domingo, 2 de janeiro de 2011

Sobre avós e pontes: tempo...

        Hoje a minha memória teimou em me recordar a minha avó (materna) Maria. Ela morreu em janeiro. Lembrei dela de uma forma dolorosamente próxima. Era uma mulher pequena, miúda, mas de uma vontade de viver, trabalhar, ajudar, inversamente proporcional ao seu tamanho. Morreu depois de 6 meses de sofrimento: aneurisma na aorta.
        Percebi então que não tenho mais avó. Vovó Noemia (minha avó paterna) morreu em 1992, há portanto 18 anos. Vovô José, seu marido, se fora 10 anos antes, ele foi o primeiro parente que eu acompanhei a doença, a morte e o enterro. Eu tinha então 10 anos. Dos meus avós só resta o Vô Justo. Está muito doente sendo cuidado por minha tia Ruth. Em meio a minha melancolia extrema, indaguei-me: Por que existem avós? Qual o papel que eles ocupam em nossas vidas?
         Eles existem para nos ligar ao passado. Para indicar-nos que existiu um tempo chamado ontem. Para nos falar de uma época que não volta. Para nos lembrar que temos um presente de presente para ser vivido, e para nos indicar que as coisas mudam. Talvez eles sejam a própria voz do Eclesiastes que brada: Vaidade de vaidade! Tudo é vaidade! Que grande ilusão! Tudo é ilusão! Há tempo para todas as coisas debaixo do céu... Tempo de nascer, tempo de morrer!
          Concluí que os avós existem para que possamos ter consciência do tempo, de nossa rápida passagem por essa Terra... e, eles estão aqui como embaixadores de um tempo que não mais volta! 
        Sem que nada digam eles nos falam do ontem. Através de suas rugas percebemos que já foram jovens. Através de suas doenças percebemos que já foram saudáveis. Por trás do sorriso entendemos que já foram belos. O tempo...
       Mas existem avós que falam do ontem. Nos ajudam a delinear o passado, a entender quem eles próprios foram. E assim, eles se tornam para nós uma ponte, uma ponte velha, mas uma ponte que une o passado ao presente.
      Vovó Noemia foi uma dessas pontes. Não uma ponte moderna, com design futurista... Não. Uma ponte que em si mesmo conta histórias. Como a Ponte Vecchio, em Florença. Ponte Velha mesmo, em bom português, que existe desde 1345, e já viu muita água rolar sob seus arcos. Que surpreendentemente abriga em si lojas de jóias. Quem já pensou nisso? Vender jóias numa ponte? Quem já se viu em cima de ponte se adquirir jóias?
      Vovó Noemia foi minha Ponte Vecchio. Aprendi a gostar de História com ela. Ela me contava muitas histórias. Do pequeno povoado de “Anel”, que ela dizia “Ané”, em algum lugar do interior de Alagoas, onde o “coroné” era o homem-forte dono das terras. Contava-me de suas paixões juvenis, de como ela gostava de ler... mas casou cedo e teve que criar os filhos, e lavar roupa “de ganho”, para ajudar nas despesas de casa.
         Falava de suas vicissitudes e da vinda para Pernambuco. Das suas atividades como membro do “Apostolado do Sagrado Coração de Jesus” na paróquia do Alto do Pascoal. Contava das histórias da bíblia, principalmente dos livros apócrifos, que não tinham em nossa bíblia protestante, de Judite, de Holofernes... Vovó era uma mulher de muita fé.
          Falava dos comunistas que queriam se infiltrar e carregá-los para “as trevas do comunismo" (tempos duros da ditadura!). Contava de sua amizade com os padres italianos que trabalhavam na paróquia, do Padre João Muscat, que voltara para Savona, sua cidade, mas ainda se correspondia com ela. Contava que um dia acolhera em sua casa D. Helder Câmara quando este visitava a comunidade. 
          E eu ficava assentado ouvindo a vovó contando e conversando. E a vovó era a ponte que me unia ao passado. Um tempo que existia em suas lembranças e memórias, mas um novelo mágico que de alguma forma chegava até mim, e trazia sentido ao meu mundo presente. E como a florentina Ponte Vecchio, eu adquiria jóias nas histórias da vovó...
         Nós chamávamos a avó Maria de “Mãe”. Nenhum de nós, netos, fomos orientados a chamá-la de vovó. Para todo mundo, filhos e netos ela era “Mãe”. Mãe era uma mulher revolucionária para o seu tempo. Ela nunca gostou de ficar em casa fazendo comida ou cuidando dos filhos. Ela gostava de comércio, de vendas. Ela vendia passarinha assada na hora e amendoim quentinho, numa banquinha de esquina.
          Ela nunca se aquietava, sempre achava uma maneira de ganhar um dinheirinho. Enquanto teve o mínimo de saúde, fazia picolé de saquinho e vendia em sua casa. A vizinhança toda era sua cliente.
          “Mãe” era uma avó de poucas palavras. Não tinha muitas histórias para contar. Não conhecia outros textos, fora os bíblicos. Mas eu achava fascinante sua capacidade de fazer amizade. Tinha amigas de velhas datas. Maria Vieira era uma de suas amigas, e as duas se divertiam falando de suas próprias dificuldades. Ela também gostava muito de cantar. Cantava com sua voz esganiçada, cantava hinos com um olhar de quem mira o Transcendente. Mãe também era uma mulher de fé...
       Minhas avós me levavam a um tempo no qual os homens tinham fé. Uma fé pura, sem interesses mercadológicos, sem perspectivas imediatistas de bênçãos programadas. Elas também me faziam passear por seus caminhos de dificuldades, de aperto, de pobreza, não para sentir pena, mas para ter certeza que a vida é cheia de desafios, e poderemos transpô-los se o quisermos, seja lavando roupa “de ganho”, seja vendendo passarinha, amendoim ou picolé de saquinho.
       Os avós gostam de netos que gostem de ouvir, ou pelo menos de enxergá-los. Hoje os netos não tem mais paciência para ouvir os avós. Então, as novas gerações vão se tornando seres sem passado. Em meio a minha melancolia, fiquei feliz. Porque meus avós cumpriram com maestria o seu papel de pontes que me conectaram ao passado, às suas experiências, a uma parte do tempo que eu não tive acesso.
           De repente me dei conta, que após cumprirem o seu papel aquelas velhas pontes desaparecem, e surgem outras... Não é que eu já começo a me ver como uma ponte? Imagino que daqui alguns anos serei avô. Espero ser uma grande e firme ponte para meus netos...
            
                                                                                           Ponte Vecchio, Florença, Itália                          
Fortaleza, 02 de outubro de 2010.

3 comentários:

  1. É interessante a forma como a vida se dá, e como Deus a permite que aconteça.Com apenas cinco anos após o início das minhas descobertas, comumente chamada pelos mortais de viver,perdi a minha primeira ponte,meu avô materno José Ferreira Brasil.Pode-se até dizer por aí que a pequenez da minha vida não permitia que houvesse sofrimento ou lágrimas de tristeza diante a um acontecimento doloroso,porém inevitável da vida.Mas não! Elas rolaram vagarosamente mostrando que nem todas as coisas sabem as pessoas e que a vida sempre nos surpreende.Caminhando em direção ao crescimento,me deparo com uma de minhas pontes já muito desgastada e quebradiça.É, foi inevitável! Ela não aguentou e aos oito anos de idade perco minha vó materna,Maria de Lourdes da Cunha Brasil.Mas por que a surpresa? Não poderia ser para sempre.O mais engraçado é que a experiência não foi dolorosa, visto que esta ponte nunca foi utilizada por mim.Pois em minha memória de oito anos, sua fraqueza e debilidade sempre existiu.

    Você pode até dizer que eu já estava vacinado contra as emoções advindas dos desabamento de minhas pontes.

    Mas ,infelizmente,em fevereiro de 2003,vinte dias antes do casamento de minha irmã mais velha;Caia arrancada de minha vida a mais valiosa ponte,minha vó paterna Ideuzuite Gomes Coelho,que morrera em um acidente de trânsito aos 77 anos.Aí você diz:"Ah!mas você já era adolescente e já estava vacinado mesmo".
    Porém, mais uma vez a vida me surpreende, mostrando que não existe vacina que não nos faça sofrer em algum momento.

    Ao cair e reclamar da dor,lembro-me quando vovó em sua grande e simplória sabedoria de mulher cristã falava-me:"Neto, em vez de reclamar, dê um Glória a Deus".


    Pronto só me restava um; o homem forte, valente cujo o nome e sobrenome eu herdara, Edmar Coelho!Meu avô paterno era um dos homens mais resistentes e bravos que conheci, mas muito teimoso e cabeça quente.Lembro-me que mesmo doente com os pés feridos e descalçados inventava de futricar com veneno para pestes.Mas aquele ano, marcou o início de sua decadência.A morte de minha vó, levou o tão valente José Edmar Coelho a depressão, as doenças e ao perecimento degradante.E depois de quase 9 anos, no dia 31 de Dezembro de 2010(o último dia do ano) eu perco a última de minhas pontes.


    E hoje tenho ouvidos ardentes e atentos prontos a receberem em qualquer momento o soar de uma voz experiente e de mãos calejadas.Porém, não há mais vozes que satisfação a pobre inquietação de ouvidos que nunca mais ouviram seus avós.

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  2. Edmar, conheço bem a dor da perda de pontes, e esta recente, ao ler, remeteu-me a tua realidade, confesso que sofri com tua revelação meu amigo. Hoje, ainda muito recente, se possível choras. Um dia li em algum lugar que as lágrimas servem como calmantes, e é mesquinho repetir o que ouvimos quando crianças "Homens não choram!", choram sim, e esses que se dão o direito de chorar são os que vencem com mais rapidez a dor da perda e passa a nova fase, a fase mais suave, ao pensamento de saudade, forte saudade, que passa para a terceira fase que é a mais gostosa: A saudade ímpar do convívio, sem mágoas, sem lágrimas, sem sofrimento, apenas lembranças boas, outras até engraçadas que nos pegamos conversando com nossa família e chegamos até a sorrir com a alegria que aquela velha ponte nos fez passar em todo o seu tempo conosco.

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  3. Agradeço sua delicadeza,mas é assim mesmo, Clévia!
    Existe um versículo na Bíblia lá em Salmos cap.56 versículo 8 que diz que Deus tem colhido as nossas lágrimas e guardadas em um odre(garrafa).Ele sabe o tempo certo de tudo acontecer.O meu vô já estava sofrendo muito.


    "há tempo de nascer e tempo de morrer;tempo de plantar e tempo de arrancar o que se plantou; tempo de matar e tempo de curar;tempo dederribar e tempo de edificar; tempo de chorar e tempo de rir; tempo de prantear e tempo de saltar de alegria" (Eclesiastes 3.2-4)

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