sexta-feira, 12 de abril de 2019

Coisas que eu aprendi no meu jardim... ou Caraca!! Cuidado com os Caracóis!!




    Quando pensamos num jardim pensamos num lugar de beleza e de tranquilidade. Lá não há barulho, há calma, e parece haver uma harmonia entre os seres vivos ali: abelhas colhem o néctar das flores, ao mesmo tempo que fazem a polinização viabilizando a fertilização e o consequente surgimento dos frutos, beija-flores voejam equilibrando-se misteriosamente no ar enquanto se alimentam do mesmo pólen... formiguinhas aqui e ali carregam folhas para seu abrigo localizado em algum lugar subterrâneo.
      Recentemente meu jardim me ensinou que nesse clima idílico e bucólico pode surgir uma ameaça calma, silenciosa, para muitos “bonita”, parecendo plenamente harmônica, mas altamente destruidora!
    Entre as plantas do meu jardim está a conhecida “Trapoeraba roxa” (Tradescantia pallida purpúrea), uma plantinha rasteira com suas folhas roxas grossas, suculentas. Plantamos porque traz um colorido novo para o jardim. Quebra a monotonia do verde. Ela espalha-se preguiçosamente até onde for permitido levando seu roxo vivo!

    Um dia desses percebi que havia caracóis no jardim. Achei bonitinho, além do mais temos  um risonho caracol de barro pintado com cores vivas, obra de algum artesão caprichoso, lá no jardim... coisa muita apropriada: se há uma representação inanimada de um caracol, então por que não termos um original, vivo?
    Decidi deixar os caracóis seguirem o curso de sua existência molusca.
     Não demorou muito para que eu percebesse que minha parte roxa do jardim estava sendo devastada! Rapidamente a “Trapoeraba roxa” estava perdendo as folhas, ficando só os talos das plantas.
      Foi aí que eu percebi que os recém-chegados não eram tão inofensivos assim. Quando fui investigar melhor no jardim, os poucos caracóis  que eu tinha visto há algumas semanas haviam se transformado em centenas! Eles eram uma praga no meu jardim! Fui pesquisar e descobri que eram hermafroditas, tinham dois sexos embora precisassem de um parceiro para o “ato sexual”.

    Decidi então ter o meu jardim de volta, e a beleza das cores da minha “Traperoaba roxa”. Como? Matando os caracóis. Decidido a exterminar os moluscos fofinhos fui à caça. Passei horas de alguns dias juntando um por um num saco e jogando-os no lixo. Isso a partir do final da tarde, porque durante o período do calor do sol eles estão abrigados em seus esconderijos.
   Depois da primeira centena de indivíduos exterminados parei de contar... mas percebi que no meu pequeno jardim os caracóis haviam se tornado uma praga, e se eu não me empenhasse em tirá-los... meu jardim perderia por completo sua beleza.

   Mortos os caracóis, algumas semanas depois o roxo da Traperoaba foi timidamente retornando. As folhas suculentas puderam voltar a crescer e colorir o jardim.
    Aprendi que coisas aparentemente gentis, inofensivas e silenciosas que acolhemos conscientemente em nossa mente podem nos oferecer perigo, e podem se proliferar e iniciar um processo de autodestruição, que se não for freado causará nossa ruína! Caraca!! Cuidado com os caracóis!

quarta-feira, 3 de abril de 2019

Como nós, romanticamente, abrimos mão do “amor” eterno


    O soneto 116 de Shakespeare vale a pena ser relembrado:
Não tenha eu restrições ao casamento
De almas sinceras, pois não é amor
O amor que muda ao sabor do momento,
Ou se move e remove em desamor.
Oh, não, o amor é marca mais constante
Que enfrenta a tempestade e não balança,
É a estrela-guia dos batéis errantes,
Cujo valor lá no alto não se alcança.
O amor não é o bufão do Tempo, embora
Sua foice vá ceifando a face a fundo.
O amor não muda com o passar das horas,
Mas se sustenta até o final do mundo.
Se é engano meu, e assim provado for,
Nunca escrevi, ninguém jamais amou.

     O poeta maior britânico escreveu esse poema no início do século XVII. Em suas palavras que cantam o amor eterno, encontramos ecos dos filósofos gregos, mas não apenas da sabedoria clássica, mas também da sabedoria hebraica, contida no Cântico dos Cânticos onde o amor é forte como a morte (Cant 8.6), ou nos ideais cristãos também encontrados na bíblia, nos quais o amor tudo espera, tudo sofre, tudo suporta, o amor nunca perece (I Co 13.4-8).
   A sabedoria antiga, grega, judaico-cristã concordava plenamente nesse ponto: O amor é eterno! Shakespeare de forma tão inspirada o retratou no Soneto 116!
   Mas os ventos de mudança sopraram fortemente sobre o amor, sobre seu atributo de eternidade.
   Em 1946, Vinícius de Morais publicava em São Paulo o seu “Soneto de Fidelidade”. Ganhou logo fama, e veio para definitivamente substituir o Soneto 116 de Shakespeare:

De tudo, ao meu amor serei atento
Antes, e com tal zelo, e sempre, e tanto
Que mesmo em face do maior encanto
Dele se encante mais meu pensamento.

Quero vivê-lo em cada vão momento
E em louvor hei de espalhar meu canto
E rir meu riso e derramar meu pranto
Ao seu pesar ou seu contentamento.

E assim, quando mais tarde me procure
Quem sabe a morte, angústia de quem vive
Quem sabe a solidão, fim de quem ama

Eu possa me dizer do amor (que tive):
Que não seja imortal, posto que é chama
Mas que seja infinito enquanto dure.



     Diferente do amor em Shakespeare, o amor em Vinícius é chama fugaz, de forma nenhum imortal, com tempo previsto para acabar. Infinito somente enquanto durar.
    O poeta brasileiro descreveu nesses versos a sua forma de ver o mundo e o amor. Não mais um amor sagrado, eterno. Mas um amor intenso, fugaz... e passageiro! Ele viveu essa realidade:  “casou-se” nove vezes.
     Interessante que é o soneto de Vinícius que os nubentes citam um para o outro em seu matrimônio. E juram amor... não eterno! Enquanto que um padre ou um pastor declara: O que Deus uniu não separe o homem, e talvez leia o texto de 1º Coríntios 13.
    E a música popular empenhou-se em propagar o novo conceito desse amor intenso e fugaz. Música baiana, pagode, sertanejo, samba... pode procurar, alguém vai estar cantando “Eu quero que esse amor seja eterno enquanto dure...”
     É assim que um conceito muda... é assim que um atributo é perdido.  É assim que o amor eterna, torna-se finito, fugaz e passageiro!
     Gosto do "poetinha"... mas quanto à perenidade do amor, prefiro Shakespeare!



sábado, 23 de março de 2019

Nem tudo o que é belo, é bom!


   Quando o mundo foi criado Deus viu que tudo era bom, no original hebraico towb  טוֹב. Essa bondade da criação inclui também o belo, essa palavra pode significar bom e belo!


   A árvore proibida é a árvore do conhecimento do bem, do towb, contrário do mal. Towb é o que é correto, certo, moral e eticamente. Ester e Abigail são bonitas, são towb. Estética, Ética e moral caminham num mesmo sentido, no pensamento hebraico bíblico.

   No Israel Antigo algo errado não poderia ser bonito. O que é bom é bonito! Assim, o caso de amor de Davi com a bonita (towb) Bate Seba, não é algo a ser apreciado e aplaudido, por mais bonito casal que os dois pudessem formar. Isso é mal, é feio (II Sm 12.9).

   Hoje, parece-nos que tudo o que é bonito, torna-se também sinônimo de bom, de certo. Há beleza em filmes, em poesias, em discursos, mas nem sempre isso é bom! Isso ocorre porque quem determina o que está certo, o que é bom é cada pessoa de forma arbitrária.
   Somos conquistados pela beleza estética de obras de arte que nos passam mensagens erradas. Porque são bonitas, são boas... Nem sempre! É importante utilizarmos os referenciais bíblicos para discernirmos o que é bom. Na verdade, precisamos voltar aos princípios bíblicos, onde somente o que é bom, é belo. Se parece belo, mas não é bom, então é mal, como o adultério de Davi.

   Acho que foi pensando nisso que Paulo, sabendo que na sociedade grega de Filipos, nem tudo o que era belo era bom, nos disse: “Tudo o que é verdadeiro, tudo o que é honesto, tudo o que é justo, tudo o que é puro, tudo o que é amável, tudo o que é de boa fama, se há alguma virtude, e se há algum louvor, nisso pensai” (Fp 4.8).

terça-feira, 22 de janeiro de 2019

Eu só quero o leve da vida... E o que faço com a dureza da vida?

Hoje cedo fui ao velório de uma pessoa de nossa comunidade. Muito pranto na terrível hora da despedida... Quando vim no carro estava tocando Trevo, da Anavitória. Gosto especialmente do trecho que diz "Eu só quero o leve da vida pra te levar..." É um trocadilho interessante.
   Fiquei pensando na dureza daquele velório. Se eu só quero o leve da vida, o que fazer com a dureza da existência? Realmente eu gostaria de que só houvesse o leve (soft) da vida, mas também tem o duro (hard). O que fazer com ele?
   Já percebeu que o Instagram é o espaço onde o leve da vida acontece? Ali compartilhamos momentos de descontração, de alegria, de realização. Outro dia postei algo sobre o sofrimento de meu pai com Mal de Alzheimer. Teve pelo menos a metade das curtidas de algo engraçado que compartilhei. É melhor ignorar o duro, e celebrar o leve.
  Parece-me que nossa tendência é negar as coisas duras. Nega-se até enquanto pode, a realidade de um diagnóstico fatídico ou os sintomas já esperados de um mal em andamento.
   Não é somente a realidade da doença e da morte que são duras. Duro é o cotidiano. Dura é a realidade que nos cerca. Duro é o trabalho. Duras são as decisões que precisam ser tomadas. Duro é o momento em que somos confrontados...
Os filhos se chateiam com os pais porque às vezes eles são muito duros. Tem pais que não conseguem mais ser duros, porque também só querem o leve da vida. Quem não é duro hoje, pode ter a dureza da vida contra si amanhã. Ser duro faz parte!
   A garotada quer ficar com todo(a)s, pra não ter que decidir um compromisso com alguém. Isso é duro! E a gente só quer o leve da vida.
   Talvez não dê pra querer só o leve da vida pra te levar...
   Dizer que algo está certo e outro errado é duro. Melhor dizer que ninguém pode afirmar nada, é muito mais leve. Acho que é politicamente correto o leve da vida. O duro é politicamente incorreto.
    Pensa-se no cristianismo como algo leve, porque Jesus disse que o meu jugo é suave e meu fardo é leve. De fato, Jesus disse isso comparando com o pesado jugo religioso dos fariseus. Mas o discurso de Jesus teve sua dureza. Alguns até questionaram: Duro é esse discurso. Quem o pode ouvir? (Jo 6.60).
   Jesus tinha total consciência da dureza da vida. O sofrimento, as dificuldades, a humilhação, a decepção, o abandono, a cruz... tudo muito hard.
Imagino que por isso mesmo Jesus tenha dito algo intensamente hard: Quem quiser vir após mim, negue-se a si mesmo, tome cada dia a sua cruz e siga-me (Lc 9.23).
A sabedoria popular também nos lembra: Rapadura é doce mas não é mole, não! Nos lembra em forma de canção o amigo João Alexandre...

quarta-feira, 3 de outubro de 2018

Falando em Eleições...



  O país ferve na semana decisiva das eleições que definirão os ocupantes do Poder Executivo e Legislativo, tanto federal quanto Estadual. Em meio ao frenesi emocionado desse momento quero pensar em eleições. Propor reflexão para o brasileiro num momento como esse, é um desafio e tanto. Isso porque, o brasileiro é um povo da emoção, do coração, muito menos que do intelecto, da reflexão, da racionalidade. Obviamente isso não é uma conclusão minha. Há 80 anos, analisando o Brasil e os brasileiros, o historiador Sérgio Buarque de Holanda escreveu um capítulo do seu livro “Raízes do Brasil” (1936), denominado “Homem Cordial”. Vale ressaltar que a palavra cordial, vem de cor, cordis – coração, em latim –, e empregada em seu sentido etimológico, ou seja, "do coração". O homem cordial é então aquele que, dotado de "um fundo emotivo extremamente rico e transbordante", nas palavras de Sérgio Buarque, age e reage sob a influência dominadora do coração.

    Portanto, contra a nossa natureza emotiva e efusiva uma breve reflexão a partir do texto bíblico.
  A palavra eleição, eleito,  é greco-latina. Em grego koinê (que é a língua em que o Novo Testamento foi escrito) teremos Eklogê (eleição), Eklektos, Eklegomai (eleito), do prefixo ek (para fora) + verbo legô (chamado, passado de kaleô, chamar). No latim encontraremos Electus, Eligere, cuja ideia é sempre a mesma, escolhido, selecionado.
  Sendo o texto do Antigo Testamento escrito em hebraico, e anterior à civilização greco-romana, não podemos falar dessa palavra no mesmo. Entretanto, encontraremos a mesma ideia expressa no verbo hebraico bachar (escolher, decidir). Então o povo de Deus é o povo bachir (escolhido). A maioria das versões do texto bíblico trazem “Filhos de Jacó, seus eleitos (bachir)” (I Cr 16.13). Um noivo é um bechir-libah (eleito do coração dela) ou simplesmente bachur (eleito), como encontramos em Is 62.5.
  Falar de eleições entre os semitas seria um anacronismo estranho. Os líderes políticos são escolhidos pelo próprio Deus (Teocracia), inclusive o primeiro rei, e a partir daí recebem a autoridade dinástica na monarquia hebraica. Os líderes religiosos também são escolhidos por Deus a partir da tribo de Levi e da família de Aarão.
  Apesar disso, há uma brecha para que o povo pudesse escolher, eleger (para usarmos um anacronismo ‘adequado’). Quando Moisés decide compartilhar a sua liderança com chefes de mil, de cem, de cinquenta e de dez, conforme orientação de seu sogro Jetro, a escolha desses líderes “operacionais” dar-se-ia por escolha do próprio povo, uma espécie de proto-eleição.
  “Como posso suportar sozinho o peso das vossas dificuldades e das vossas discórdias? Escolhei homens sábios, inteligentes e experientes das vossas tribos, e eu os porei como chefes sobre vós” (Dt 1.12-13). A Bíblia de Jerusalém traz o segundo versículo da seguinte forma: “Elegei homens sábios, inteligentes e competentes...”
  Assim, parece-nos que os chefes, anciãos, príncipes das tribos eram escolhidos através de eleições. Não podemos afirmar se diretas ou indiretas.
  Ressalte-se porém, da qualificação que esses homens precisam ter: Sábios, inteligentes e experientes.
  No período Inter-testamentário surgem no cenário da história ocidental os gregos, que ainda no século V ou VI a.C, em Atenas, realizaram as primeiras eleições. Por isso o vocábulo é originalmente grego. Os romanos copiaram os gregos e a palavra veio para o latim Electus, Eligere.


  Então, é no Novo Testamento, escrito em grego comum, que abundantemente encontraremos a ideia de Eleição, Eleitos.
  Jesus diz aos seus discípulos: “Não fostes vós que me escolhestes; pelo contrário, eu vos escolhi e vos designei a ir e dar fruto...” (Jo 15.16). O apóstolo Paulo afirma: “Como também nos elegeu nele, antes da fundação do mundo, para sermos santos e irrepreensíveis diante dele em amor” (Ef 1.4).
  Curiosamente, a comunidade cristã é teocrática, entretanto, tem liberdade para fazer suas escolhas e votar a partir de determinados critérios, submetendo no final à vontade divina. Observamos ainda nos primeiros dias dessa comunidade, fazia-se necessário que alguém fosse nomeado apóstolo no lugar de Judas Iscariotes, o traidor.
  Foi apontado o critério da escolha “homens que conviveram conosco todo o tempo em que o Senhor Jesus andou entre nós” (At 1.21). Foram apresentados dois: José, chamado Barsabás, e Matias. Oraram e tiraram sortes, sendo sorteado Matias.
  Mas é na escolha dos diáconos que o processo eleitoral se configura de forma muito clara:
  “Portanto, irmãos, escolhei dentre vós sete homens de boa reputação, cheios do Espírito Santo e de sabedoria, aos quais encarreguemos deste serviço... A proposta agradou a todos, e elegeram.. Estêvão... Prócoro, Nicanor, Timão, Pármenas e Nicolau. E apresentaram perante os apóstolos, os quais depois de orar, impuseram-lhes as mãos.” (At 6.3-7)
  Foram determinadas as características que os postulantes à função deveriam possuir “de boa reputação, cheios do Espírito Santo e de sabedoria”, e iniciaram-se os trabalhos para eleição. A comunidade elegeu os sete homens, cujos nomes foram submetidos ao Colégio Apostólico, que funcionava também como Tribunal Eleitoral.
  Depois de orar, que seria de fato submeter os eleitos à soberana vontade de Deus, foram investidos nas suas funções através da imposição de mãos.
  Em vésperas de eleições é importante perguntar-nos sobre a serenidade que temos (ou não temos) ao fazer nossas escolhas. Estamos escolhendo apaixonadamente como homo brasilis cordialis que somos? Estamos nos deixando ser conduzidos pelo turbilhão de emoções produzidos pelas ruidosas e apelativas campanhas eleitorais?
  Estamos certos que as características de nosso candidato são compatíveis com o cargo para o qual o estamos elegendo? Acho que a recomendação de Moisés ainda é válida: “Elegei homens sábios, inteligentes e experientes”. Para isso é preciso mais racionalidade, e menos emoção!
 
 

segunda-feira, 2 de abril de 2018

Ressurreição... e feridas a serem saradas


   Quando eu era garoto me feri várias vezes. Brincando caía no chão e o joelho ficava ralado. Ferida para vários dias. Ainda tenho uma cicatriz na testa quando correndo dentro de casa pisei num carrinho de brinquedo e minha testa foi parar na quina da máquina de costura de minha mãe. Essa precisou de hospital e pontos. Faz muito tempo, mas ainda lembro: 11 pontos, 5 internos e 6 externos (ou era o contrário?). Passei um tempão com uma faixa na testa até sarar. Uma vez derramei água quente no meu braço, foi um Deus-nos-acuda. Queimadura de não-sei-quantos-graus. Vários dias colocando pomada, depois a casca, e a ferida foi sarando.
    Para a ferida sarar precisa de formar a casca. Menino adora tirar a casca da ferida. A casca é feia, vontade de tirar logo pra aparecer a pele limpinha e saudável. Ia tirar a casca e o sangue jorrava e lá estava a ferida aberta de novo!
    Feridas demoram a sarar. Precisa de paciência. Não adianta tirar a casca. A casca é o sinal bem visível que houve alguma coisa muito errada ali, mas está sarando...
    Mas paciência é uma virtude estranha para nós do século XXI. A tecnologia reduziu todo o tempo de espera do homem. Não precisamos mais ter paciência. Não precisamos esperar notícias de alguém por carta (par avion), por mais distante que ela esteja no planeta, sendo acessível pela internet, nos falamos pelo Whatsapp, Tweeter, Facebook, Instagran, por email.
     Não precisamos mais enfrentar intermináveis filas nos bancos, nos autoatendemos no aplicativo, disponível à mão, em qualquer momento do dia.
      Não precisamos ter paciência para que a dor nos deixe. Os analgésicos nos prometem alívio imediato.
     Mas a tecnologia ainda não consegue fechar instantaneamente uma ferida aberta. É preciso esperar os processos de cicatrização orquestrados sabiamente pelo organismo. É preciso ter paciência!
     Entretanto, mais lentas de sarar do que as feridas do corpo, são as feridas da alma. Essas cicatrizam ainda mais lentamente. Talvez porque as feridas da alma sejam mais profundas, mais doloridas. Não são meros arranhões.
     Eu lembro que vovó Noemia tinha uma ferida na perna que, por razões que eu nunca entendi bem, ela conviveu alguns anos com aquela ferida, e vivia com curativos o tempo todo. Ficamos muito felizes quando a ferida sarou.
   Algumas feridas da alma são assim, demoram tempos para sarar. Mas não queremos esperar sarar. Não queremos uma casca de ferida na alma. É feio. Lembra do que aconteceu. E nós queremos mesmo é esquecer. E como meninos que ainda somos, vamos tirar a casca, e aí a ferida diz que ainda está lá. Ainda não cicatrizou. Lembra-nos que é preciso paciência.
    Em tempos de páscoa e ressurreição, lembro da canção do Stenio que retrata o encontro de Jesus ressuscitado com Tomé, seu discípulo:
    “A minha ferida já sarou, vejo que a tua ainda não, deixa eu tocar teu coração”.

    As feridas de Jesus feitas pelos cravos estavam cicatrizadas, mas as feridas do coração de Tomé, por se sentir abandonado pelo seu Mestre, ainda estavam lá. E Jesus está ali para tocar o seu coração, e ajudar a sarar as feridas de sua alma.
    A ressurreição foi um tempo de cura das feridas dos discípulos. Pedro também tinha uma ferida sangrenta. A ferida da culpa por ter negado o seu mestre. Tem feridas que nunca serão saradas por si mesmas. É preciso que outro traga o remédio. Jesus trouxe o seu perdão a Pedro. Aquela ferida agora estava sarando!
    Como os discípulos temos feridas em nossas almas. Quando fazemos uma ferida no coração de alguém, uma ferida também é aberta em nossos corações. Não podemos ferir Deus, mas podemos agredi-lo em sua honra e santidade. E isso gera em nosso interior feridas profundas, que somente Ele mesmo pode nos oferecer o processo de cura. A morte e ressurreição do Filho de Deus é a provisão divina para nossa cura. O profeta Isaías disse isso muito claramente:
      “Verdadeiramente, ele tomou sobre si as nossas ENFERMIDADES e as nossas DORES levou sobre si” (Is 53.4)    
      O melhor curativo para as feridas da alma não é um antibiótico, é o perdão. Se ferimos alguém, corramos para pedir-lhe perdão. Se alguém nos feriu, perdoemos, para que nossas feridas sejam saradas.
     Às vezes essas feridas levam tempo para sararem, como a ferida da perna da vovó. Mas saram. Às vezes dói. Às vezes achamos a casca da ferida muito feia. Mas precisamos ter paciência. A feiúra da casca da ferida é o melhor indicativo de que a ferida está sarando, breve a casca vai cair e só haverá ali uma cicatriz.
                                             Deixa eu tocar teu coração (Stenio Marcius)


segunda-feira, 26 de fevereiro de 2018

Ouvistes o que foi dito... Eu, porém, vos digo



  

   Parte do sermão do monte é destinada a uma seção com esta estrutura: Ouvistes o que foi dito... eu, porém, vos digo (Mt 5 21-48). Esse trecho do sermão de Jesus é precedido de um esclarecimento acerca do cumprimento da lei de Moisés, ou da possibilidade de Jesus estar ali com a missão de abolir a lei: “Não cuideis que vim destruir a lei ou os profetas, não vim abolir, mas cumprir...” (Mt 5.17)
    A lei foi um estágio importante de nosso aprendizado, e não pode ser simplesmente ignorada, ou abolida. Jesus veio ampliar o seu entendimento e aplicação.
   Esse trecho do sermão é finalizado com uma exortação: Sede vós teleioi (perfeitos, adultos, maduros) como é perfeito o vosso Pai, que está nos céus (Mt 5.48). O sentido natural de teleios é adulto, aquele que atingiu o pleno estágio de desenvolvimento, em contraponto aos bebês, garotos.
    O caminho para o teleios passa necessariamente pelo “ouvistes que foi dito”. Foi o próprio Deus que idealizou o “estágio seguinte”, tendo em vista o descumprimento da aliança por parte de Israel:
    Eis que dias vêm, diz o Senhor, em que farei um concerto novo com a casa de Israel e com a casa de Judá... Mas este é o concerto que farei com a casa de Israel depois daqueles dias, diz o Senhor: porei a minha lei no seu interior e a escreverei no seu coração; e eu serei o seu Deus, e eles serão o meu povo (Jer 31.31-33).
    Enquanto a lei estava escrita em tábuas de pedra, num novo estágio a lei estaria escrita no coração de cada homem.
   Ao recapitular algumas ordenanças da lei, Jesus vai ampliando necessariamente a sua aplicação:
   Ouvistes o que foi dito aos antigos: Não cometerás adultério. Eu, porém, vos digo que qualquer que atentar numa mulher para a cobiçar já em seu coração cometeu adultério com ela (Mt 5.27-28).
    Alguns dos maiores problemas dos leitores da bíblia hoje tem a ver com ignorar este princípio estabelecido por Jesus:  Ouvistes que foi dito... eu, porém, vos digo. No Antigo Testamento temos a palavra de Deus, que não foi abolida, mas precisa ser entendida à luz deste princípio: Ouvistes que foi dito... eu, porém, vos digo.  Se ignorarmos esse princípio teremos posicionamentos errados,  atitudes equivocadas, entendimentos falhos, e ainda estaremos afirmando sermos bíblicos!
    Vejamos alguns exemplos:
    Ouvistes que foi dito... que Elias quando ameaçado pelos soldados do rei Acazias pediu que descesse fogo do céu e consumisse o capitão que veio prendê-lo e os seus 50 soldados, tendo isto acontecido por duas vezes (II Rs 1.9-12).
  Ouvistes que foi dito... o sacerdote Joiada foi o mentor espiritual e conselheiro do jovem Rei Joás, que inclusive, sob sua orientação  promoveu uma reforma no templo de Deus. Após a morte de Joiada, Joás deu ouvidos a conselhos ímpios e desviou-se do Senhor. O Espírito de Deus revestiu a Zacarias, filho de Joiada e profetizou trazendo a palavra de juízo de Deus. O rei Joás mandou apedrejar Zacarias no templo:
     Assim o rei Joás não se lembrou da beneficência que Joiada, pai de Zacarias, lhe fizera; porém matou-lhe o filho, o qual, morrendo disse: O Senhor o verá e o requererá (II Cr 24.22).

    Ouvistes que foi dito... Salmos imprecatórios! Entre os salmos de louvor, de gratidão, estão alguns salmos classificados como salmos imprecatórios. Estes salmos são clamores por vingança. São pedidos que a justiça de Deus se manifeste sobre os ímpios. Algo parecido com o clamor final do profeta Zacarias ao ser apedrejado.
   Consome-os na tua indignação, consome-os de modo que não existam mais, para que saibam que Deus reina em Jacó até aos confins da terra (Sl 59.13).
    Ouvistes que foi dito: Olho por olho e dente por dente (Mt 5.38).
     Pelos exemplos que estamos trazendo, percebe-se que o homem do Antigo Testamento tinha uma noção muito elementar da misericórdia e da graça de Deus. Seu estágio de aprendizagem ainda é muito rudimentar. Mas, importante, necessário, válido!
    Antes de chegarmos ao “Eu porém vos digo”, de Cristo,  precisamos citar dois livros do Antigo Testamento que nos apontam um avanço significativo dessa aprendizagem: Oséias e Jonas.
    Em Oséias veremos algo totalmente novo. Um profeta é mandado para casar com uma moça de reputação moral comprometida, após o casamento e os filhos que se sucedem, ela volta aos costumes de prostituição, e adultério, então ele retorna, a acolhe novamente, recebe-a novamente como sua esposa, a perdoa e ama. O que havia sido dito, olho por olho, dente por dente, previa a morte por apedrejamento daquela mulher adúltera. Não o perdão, e a reconciliação.

   Mas tudo o que acontece em Oséias não é iniciativa do profeta, é ordenança de Deus. Então nós teremos de fato algo novo, mas não porque no coração desse homem tenha perdão ou misericórdia, mas porque ele estava sendo obediente a voz de Deus.
    Em Jonas fica mais claro ainda a resistência do homem em operacionalizar a graça e misericórdia de Deus. Um povo idólatra, só merecia a destruição. Deus em seu amor e graça envia Jonas para despertar o povo de seu erro. Jonas não quer  trazer a mensagem porque quer ver o cumprimento do “olho por olho, dente por dente”. Fica então frustrado quando o povo se arrepende e Deus não destrói a cidade.
    Eu porém vos digo...
    Quando Jesus enviou alguns discípulos para preparar pousada numa aldeia de samaritanos, estes não foram recebidos pois o seu aspecto era de quem ia a Jerusalém. João e Tiago então disseram: Senhor, queres que digamos que desça fogo do céu e os consuma, como Elias também fez? Jesus os repreende e diz: Vós não sabeis de que espírito sois. Porque o Filho do Homem não veio para destruir as almas dos homens, mas para salvá-las. E foram para outra aldeia (Lc 9.51-56).
   Os discípulos estavam vivendo um outro momento, mas continuavam apegados ao “ouvistes o que foi dito”. Pedir fogo do céu para consumir alguém parece ser tanto mais espiritual, quanto bíblico, afinal Elias o havia feito! Mas não é este o espírito que Jesus foi enviado. Não de destruição, mas de restauração.
    Discutindo sobre o perdão, Pedro pergunta a Jesus:
    Senhor, até quantas vezes pecará meu irmão contra mim, e eu lhe perdoarei? Até sete? Jesus lhe disse: Não te digo até sete, mas até setenta vezes sete (Mt 18.21-22).
    Perdão parece ser algo muito novo para Pedro, acostumado aos salmos imprecatórios! Então ele propõe que possa perdoar sete vezes o seu irmão. Sendo isso um avanço impensável! Jesus então diz, não sete, mas setenta vezes sete. Este número é uma inversão da vingança encontrada em Gn 4.24... Eu, porém,  vos digo!
     Pedro diz que dará a sua vida por Jesus, Jesus então lhe diz que “não cantará o galo enquanto Pedro não tiver lhe negado três vezes” (Jo 13.37-38).
     Pedro nega a Jesus três vezes, como fora predito. Lucas registra que:
     E, virando-se o Senhor, olhou para Pedro, e Pedro lembrou-se da palavra do Senhor, como lhe tinha dito: Antes que o galo cante hoje, me negarás três vezes. E, saindo Pedro para fora, chorou amargamente.  (Lc 22.61-62)

      Como poderia ser ele perdoado depois de tão grande pecado contra seu Senhor?
     Ouvistes o que foi dito... Eu, porém, vos digo.
     Zacarias ao ser apedrejado clamou pela vingança divina: O Senhor o verá e o requererá. Jesus crucificado entre dois ladrões, com uma coroa de espinhos em sua cabeça, vendo suas vestes sendo repartidas, sofrendo o escárnio da multidão, bradou:
     Pai, perdoa-lhes, porque não sabem o que fazem. (Lc 21.34)
     Após sua ressurreição Jesus encontra Pedro e os demais discípulos no Mar da Galileia, conversa com Pedro e indaga se ele o ama. A pergunta é feita por três vezes, a mesma quantidade de vezes que Pedro negara Jesus. Ao final Jesus diz a Pedro: Apascenta as minhas ovelhas (Jo 21.15-17).

    Jesus não apenas enuncia uma ordenança, ele o faz. Ele não apenas diz a Pedro que devemos perdoar tantas vezes sejam necessárias. Ele perdoa Pedro, e restabelece a amizade de ambos. É o Deus-Homem que entre nós está, vivendo nossas decepções, frustrações, sendo negado, traído e humilhado, que tem toda a propriedade para dizer: Pai perdoa-lhes.
     Jesus não apenas é o exemplo. Ele, através do seu Espírito Santo, nos capacita a agirmos como ele. Pois o seu concerto está nos nossos corações. Não agimos apenas porque fomos ordenados a agir, como Jonas ou Oséias, agimos porque nosso coração é habilitado para assim fazê-lo.
    Ouvistes o que foi dito... Quando Zacarias estava morrendo apedrejado bradou: Deus o verá e o requererá.
    Estêvão foi injustamente acusado de blasfêmia, após ter pregado um dos mais belos sermões da história. Ao ser apedrejado, pondo-se de joelhos, clamou com grande voz: Senhor, não lhes imputes este pecado (At 7.60).

    Ninguém ordenou a Estêvão que assim o dissesse, mas o seu coração cheio de amor pelo Senhor Jesus, pôde expressar livremente essas palavras.
    Que seja assim conosco, em pleno século XXI... que no nosso coração fale mais alto “eu, porém, vos digo”.