segunda-feira, 18 de abril de 2016

O caminho do Evangelho: a saída necessária

      "Saiamos, pois, a ele fora do arraial, levando o seu vitupério." Heb 13:13


     Ser cristão é assumir o desafio da não acomodação, é entrar pela porta estreita, é entender que precisa negar a si mesmo e levar a sua cruz diária, é levar na vida a vergonha da cruz. Coisa difícil de se falar no mundo de hoje onde se prega e se vive o evangelho da acomodação, do bem-estar e da realização pessoal.
   Quando um jovem veio se prontificar a seguir Jesus, o mestre não lhe mostrou as alegrias do discipulado, e sim, as agruras e obstáculos do mesmo, e a outro ele mostrou que seguir a Cristo é uma questão de prioridade (Mt 8.18-20).
    Os ensinos de Jesus foram testados na prática tão logo as dificuldades começaram a surgir. No caso da comunidade de judeus cristãos, quando perseguida pelas autoridades romanas pensaram em voltar à prática do judaísmo. O judaísmo era uma religião lícita, dentro da legalidade, no império romano. Abraçar o cristianismo já era outra história, significava abraçar uma fé ilegal, uma crença não reconhecida pelo Estado, e portanto, perseguida e marginalizada. É nesse contexto que a epístola aos Hebreus é escrita.  Seu autor mostra que não houve uma ruptura entre os profetas da Velha Aliança e os ensinos de Jesus. Ele começa sua carta afirmando:
     "Havendo Deus antigamente falado muitas vezes, e de muitas maneiras, aos pais, pelos profetas, a nós falou-nos nestes últimos dias pelo Filho..." (Heb 1.1)
     E a carta é uma defesa da superioridade do novo concerto, e que a lei e suas ordenanças eram sombras do que seria definitivo (Heb 10.1). Já no final da carta, o missivista lança um desafio aos seus leitores:
   "Porque os corpos dos animais, cujo sangue é, pelo pecado, trazido pelo sumo sacerdote para o santuário, são queimados fora do arraial. E por isso também Jesus, para santificar o povo pelo seu próprio sangue, padeceu fora da porta. Saiamos, pois, a ele fora do arraial, levando o seu vitupério." Heb 13:11-13
     Para os cristãos judeus que estão relutando em se expor ao seguir Jesus, que estão protegidos no arraial do judaísmo, lhes é lançado um desafio: Saiamos, pois, a ele fora do arraial, levando a sua vergonha!
    Porque os corpos são queimados fora do arraial, e Cristo padeceu fora da porta. Vamos também nos expor fora das portas.
    O arraial ou acampamento ao qual se refere o escritor aos Hebreus remonta aos tempos de peregrinação de Israel no deserto. Fora do arraial era o lugar da sujeira, de algo que podia contaminar. Foi por isso que ao ser vista como leprosa, Miriã é conduzida para fora do arraial (Nm 12.14). Lugar de leprosos é fora do arraial, fora das portas da cidade, por isso que eles foram os primeiros a descobrir que os sírios haviam fugido do cerco a Samaria (II Rs 7.3-8).

    Fora das portas aconteciam algumas abominações e rituais de idolatria, como os sacrifícios de crianças, que ocorriam no Vale do Filho de Hinom (II Cr 33.6), ao sul das muralhas de Jerusalém.

     Fora dos muros era o lugar das crucificações, onde eram expostos para todas as pessoas os indivíduos que se tornaram persona non grata para o império romano, onde se executavam ladrões, rebeldes, pessoas perigosas para a sociedade. A lei de Moisés previa a execução por crucificação, mas informava que o pendurado era maldito (Dt 21.22-23).
    Para nos santificar, Cristo padeceu fora dos muros, tornou-se maldito, foi condenado como criminoso.

   Imagino que para o judeu do primeiro século declarar-se seguidor de um criminoso deve ter sido coisa muito complicada. Sou adepto do crucificado. Não existia vergonha maior. Mas a cruz que ele levou não era sua. Como diz um velho hino, a cruz que ele levou não era sua, era minha, era tua, era de Barrabás! E muitos anos antes, o profeta bradava: "Ele foi ferido pelas nossas transgressões e moído pelas nossas iniquidades, o castigo que nos traz a paz estava sobre ele, e pelas suas pisaduras, fomos sarados" (Is 53.5).
     Para santificar o seu povo pelo seu próprio sangue, ele padeceu, fora da porta! Saiamos, pois a ele, fora do arraial, levando a sua vergonha.

    Ainda durante o julgamento de Jesus, os seguidores de Cristo tiveram dificuldade em cumprir esse desafio. Mateus é o único que registra o que está implícito nos outros evangelhos: Por ocasião da prisão do Senhor, "todos os seus discípulos, deixando-o, fugiram" (Mt 26.56), com exceção de Pedro, que o segue de longe (Mt 26.58), mas não quer sair e levar a sua vergonha, por isso o nega três vezes (Mt 26.69-75). Este fato, sim, registrado em todos os evangelhos, talvez para nos alertar, quão difícil é "sair a ele fora do arraial, levando a sua vergonha".
    Os primeiros dias após a ressurreição, os discípulos ficam no cenáculo orando. É a descida do Espírito santo que lhes capacita a sair fora do cenáculo, e se expor no dia da grande festa de pentecostes, levando a sua vergonha. E o mesmo Pedro que o negara, agora em alto e bom som se identifica com a vergonha do crucificado, afirmando: "A Jesus Nazareno... a este que vos foi entregue pelo determinado conselho e presciência de Deus, tomando-o vós, o crucificastes e matastes pelas mãos de injustos; ao qual Deus ressuscitou..." (At 2.22-24).
    Porém, era seguro, era cômodo, era providencial, continuar em Jerusalém. Pra que se expor fora das portas? Fora do arraial tem samaritanos misturados, tem gentios pecadores... enfim, toda sorte de leprosos espirituais e idólatras!
   É uma perseguição que vai fazê-los sair fora das portas levando a vergonha de Cristo (At 8.1). Tudo bem, que judeus fora da Palestina possam ser cristãos, mas gentios? Isso nunca! Não tinha sentido a igreja sair fora das portas do judaísmo. Quem quisesse abraçar a fé cristã precisava entrar pelas portas do judaísmo, se circuncidando, guardando a lei...
   É preciso que Pedro tenha uma visão que lhe faça mudar de ideia (At 10.9-16), e que um Concílio em Jerusalém (At 15) ratifique que o desafio da igreja é "Sairmos a ele fora do arraial levando a sua vergonha!"
   O apóstolo Paulo foi um dos primeiros a entenderem plenamente essa verdade. Mas houve momentos em que não foi fácil cumpri-la. Ninguém imagine que sair fora do arraial levando a sua vergonha é algo simples. Explico:
   Paulo realizou sua primeira viagem missionária pelas regiões da Cilícia (sua terra natal), Chipre, Pisídia e Galácia. Não enfrentou nenhum grande centro grego, nenhuma grande metrópole universitária, nenhum grande centro filosófico.
   Em sua segunda viagem missionária ele visita as igrejas fundadas anteriormente, e então pensa em ir para a Bitínia (At 16.7), ao norte, onde continuaria pregando em médias e pequenas cidades, utilizando o apoio inicial dos judeus que fossem convertidos, e que talvez não vissem na mensagem do evangelho motivo de grande afronta.

    Paulo porém, foi impedido pelo Espírito Santo de ir à Bitínia.  Numa visão é chamado a passar à Macedônia, adentrar a Europa, pisar em solo grego, pregar nas metrópoles cultas e famosas da Grécia. Como esse povo receberia a mensagem do crucificado? Esse era o grande temos de Paulo. Não tendo outra opção Paulo vai à Europa, saindo fora do arraial, levando a vergonha de Cristo.
     Seus temores em parte se confirmam, quando sua pregação no areópago ateniense é bruscamente finalizada pois muitos intelectuais gregos não se interessam em ouvir sobre um crucificado que morre e ressuscita (At 17.32-34).  Alguns porém creem. Paulo é assaltado por um temor (I Co 2.3), vontade de não sair fora mais, temor de levar a vergonha de Cristo e se tornar ridículo diante da intelectualidade grega... Já comprovou que o evangelho é loucura para os gregos e escândalo para os judeus (I Co 1.23). O que fazer? Toma então uma decisão:
   Nada vou pregar, a não ser a Jesus Cristo, e este crucificado! (I Co 2.2). Em outras palavras, vou sair fora do arraial levando a sua vergonha, custe o que custar! É assim que Paulo evangeliza a grande cidade grega de Corinto, e depois Éfeso... É assim que cada um de nós poderá realizar o desafio que nos é proposto. Saiamos a ele fora do arraial, levando a sua vergonha!

sábado, 2 de abril de 2016

Os fuzilamentos de 03 de maio de 1808, Goya: Ironias da história e uma reflexão sobre trevas e luz...

    Estive no Museu do Prado, em Madri, ainda no final do século passado. Algumas obras me marcaram, dentre as quais, sempre lembrarei do enorme quadro de Goya, 268 x 347 cm, “Os fuzilamentos de 03 de maio de 1808”, uma pintura impressionante.

O tema desta obra remete-nos para um acontecimento histórico: os fuzilamentos levados a cabo pelo exército francês sobre a população de Madrid que havia pegado em armas para defender a cidade do invasor. Esta obra eterniza esse massacre, quarenta e três patriotas foram fuzilados às quatro da manhã na montanha do Príncipe Pio.
     Os franceses, que há pouco menos de 20 anos haviam sido arautos para todo o mundo do grito de Liberdade, Igualdade e Fraternidade, com o qual pretendia-se inaugurar o século das luzes, agora eram algozes de seus irmãos espanhóis... Ironias da História.  O historiador Starobinski entende que é a partir desse prisma que Goya imortaliza os fuzilamentos de 03 de maio de 1808:

   “A França revolucionária, foco de onde irradiava a luz dos princípios, e de que Goya esperara a expansão pacífica, faz irrupção sob a fisionomia de um exército violento, semeado à sua passagem os assassinatos e as violações absurdas. Uma inversão maléfica substituiu a luz pelas trevas. A esperança foi traída; a história, que parecia progredir no sentido da liberdade, perde seu eixo positivo e se torna uma cena insensata. Como se vê, não estamos mais apenas na presença do que chamávamos, a propósito da arte neoclássica, de o retorno da sombra: vemos efetuar-se uma verdadeira permutação que substitui por uma fonte de trevas aquilo que de início parecera uma fonte de luz...  Continuarei aqui a interrogar a obra tardia de Goya, porque ela expõe aos nossos olhos o destino longínquo daquilo que esteve em jogo em 1789. O resultado é lido no quadro “Os fuzilamentos de 3 de maio de 1808”:


    O grupo ritmado e disciplinado dos solados do pelotão de execução representa uma racionalidade demente; a regularidade, a ordem (que deveriam marcar o triunfo dos princípios) vêm apenas regulamentar o exercício da violência. Pela obliquidade que Goya confere à cena, ele esconde o rosto dos hussardos franceses: estes só aparecem de perfil, contra a luz da sinistra lanterna colocada a seus pés; deles não percebemos senão o equipamento: fuzis, barretinas, correames, capotes, sabres. Ocupam o primeiro plano, mas tudo neles corresponde e se harmoniza com o céu noturno que domina o fundo da cena.


    A luz, em compensação, se liga e se associa ao grupo das vítimas, e mais particularmente ao homem do povo que a salva iminente vai abater: Goya soube dar ao seu rosto sem beleza a expressão simples que está ao mesmo tempo para além da coragem e do terror; de braços estendidos na atitude da crucificação, as mãos perfuradas, esse espanhol de traços grosseiros ganha de súbito a dimensão do Judeu eterno, do Homem humilhado pelo homem. Ainda que difundida logicamente a partir da lanterna, a luz, para o espectador, parece emanar da camisa branca do supliciado.
    Diante da vontade mecanizada do pelotão de execução, assistimos à tragédia da vontade vã, a impotência absoluta. Mas essa vontade vã, incapaz de desviar a morte, Goya nos faz pressentir que ela não poderia ser atingida nem destruída pela morte. Ele a eterniza... Aqui se trata de um homem obscuro, cujo nome e identidade não nos são transmitidos. Assim ficamos atentos ao valor mais elementar, à liberdade inseparável da existência mais comum... A tormenta e a tempestade, como também bala e o cutelo, anunciam o aniquilamento de nossa existência sensível, mas despertam em nós a certeza de escapar aos limites que ela nos atribui...
    Apenas pintores capazes de restituir ao mundo material toda a sua selvageria, toda a sua inextricável riqueza de cores, de luzes e de trevas mescladas... puderam fazer aparecer a invisível presença da “liberdade moral”.

(Starobinski, Jean. 1789, Os Emblemas da Razão, Cia das Letras, 1989, pág. 129-131)