Estive no Museu do Prado, em Madri, ainda
no final do século passado. Algumas obras me marcaram, dentre as quais, sempre
lembrarei do enorme quadro de Goya, 268 x 347 cm, “Os fuzilamentos de 03 de
maio de 1808”, uma pintura impressionante.
O tema desta obra remete-nos para
um acontecimento histórico: os fuzilamentos levados a cabo pelo exército
francês sobre a população de Madrid que havia pegado em armas para defender a
cidade do invasor. Esta obra eterniza esse massacre, quarenta e três patriotas
foram fuzilados às quatro da manhã na montanha do Príncipe Pio.
Os franceses, que há pouco menos
de 20 anos haviam sido arautos para todo o mundo do grito de Liberdade,
Igualdade e Fraternidade, com o qual pretendia-se inaugurar o século das luzes,
agora eram algozes de seus irmãos espanhóis... Ironias da História. O historiador Starobinski entende que é a
partir desse prisma que Goya imortaliza os fuzilamentos de 03 de maio de 1808:
“A França revolucionária, foco de onde irradiava a luz dos princípios, e
de que Goya esperara a expansão pacífica, faz irrupção sob a fisionomia de um
exército violento, semeado à sua passagem os assassinatos e as violações
absurdas. Uma inversão maléfica substituiu a luz pelas trevas. A esperança foi
traída; a história, que parecia progredir no sentido da liberdade, perde seu
eixo positivo e se torna uma cena insensata. Como se vê, não estamos mais
apenas na presença do que chamávamos, a propósito da arte neoclássica, de o
retorno da sombra: vemos efetuar-se uma verdadeira permutação que substitui por
uma fonte de trevas aquilo que de início parecera uma fonte de luz... Continuarei aqui a interrogar a obra tardia
de Goya, porque ela expõe aos nossos olhos o destino longínquo daquilo que
esteve em jogo em 1789. O resultado é lido no quadro “Os fuzilamentos de 3 de
maio de 1808”:
O grupo ritmado e disciplinado dos
solados do pelotão de execução representa uma racionalidade demente; a
regularidade, a ordem (que deveriam marcar o triunfo dos princípios) vêm apenas
regulamentar o exercício da violência. Pela obliquidade que Goya confere à
cena, ele esconde o rosto dos hussardos franceses: estes só aparecem de perfil,
contra a luz da sinistra lanterna colocada a seus pés; deles não percebemos
senão o equipamento: fuzis, barretinas, correames, capotes, sabres. Ocupam o
primeiro plano, mas tudo neles corresponde e se harmoniza com o céu noturno que
domina o fundo da cena.
A luz, em compensação, se liga e
se associa ao grupo das vítimas, e mais particularmente ao homem do povo que a
salva iminente vai abater: Goya soube dar ao seu rosto sem beleza a expressão simples
que está ao mesmo tempo para além da coragem e do terror; de braços estendidos
na atitude da crucificação, as mãos perfuradas, esse espanhol de traços
grosseiros ganha de súbito a dimensão do Judeu eterno, do Homem humilhado pelo
homem. Ainda que difundida logicamente a partir da lanterna, a luz, para o
espectador, parece emanar da camisa branca do supliciado.
Diante da vontade mecanizada do
pelotão de execução, assistimos à tragédia da vontade vã, a impotência
absoluta. Mas essa vontade vã, incapaz de desviar a morte, Goya nos faz
pressentir que ela não poderia ser atingida nem destruída pela morte. Ele a
eterniza... Aqui se trata de um homem obscuro, cujo nome e identidade não nos são
transmitidos. Assim ficamos atentos ao valor mais elementar, à liberdade
inseparável da existência mais comum... A tormenta e a tempestade, como também bala
e o cutelo, anunciam o aniquilamento de nossa existência sensível, mas
despertam em nós a certeza de escapar aos limites que ela nos atribui...
Apenas pintores capazes de restituir ao
mundo material toda a sua selvageria, toda a sua inextricável riqueza de cores,
de luzes e de trevas mescladas... puderam fazer aparecer a invisível presença
da “liberdade moral”.
(Starobinski, Jean. 1789, Os Emblemas da Razão, Cia das
Letras, 1989, pág. 129-131)
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