sábado, 2 de abril de 2016

Os fuzilamentos de 03 de maio de 1808, Goya: Ironias da história e uma reflexão sobre trevas e luz...

    Estive no Museu do Prado, em Madri, ainda no final do século passado. Algumas obras me marcaram, dentre as quais, sempre lembrarei do enorme quadro de Goya, 268 x 347 cm, “Os fuzilamentos de 03 de maio de 1808”, uma pintura impressionante.

O tema desta obra remete-nos para um acontecimento histórico: os fuzilamentos levados a cabo pelo exército francês sobre a população de Madrid que havia pegado em armas para defender a cidade do invasor. Esta obra eterniza esse massacre, quarenta e três patriotas foram fuzilados às quatro da manhã na montanha do Príncipe Pio.
     Os franceses, que há pouco menos de 20 anos haviam sido arautos para todo o mundo do grito de Liberdade, Igualdade e Fraternidade, com o qual pretendia-se inaugurar o século das luzes, agora eram algozes de seus irmãos espanhóis... Ironias da História.  O historiador Starobinski entende que é a partir desse prisma que Goya imortaliza os fuzilamentos de 03 de maio de 1808:

   “A França revolucionária, foco de onde irradiava a luz dos princípios, e de que Goya esperara a expansão pacífica, faz irrupção sob a fisionomia de um exército violento, semeado à sua passagem os assassinatos e as violações absurdas. Uma inversão maléfica substituiu a luz pelas trevas. A esperança foi traída; a história, que parecia progredir no sentido da liberdade, perde seu eixo positivo e se torna uma cena insensata. Como se vê, não estamos mais apenas na presença do que chamávamos, a propósito da arte neoclássica, de o retorno da sombra: vemos efetuar-se uma verdadeira permutação que substitui por uma fonte de trevas aquilo que de início parecera uma fonte de luz...  Continuarei aqui a interrogar a obra tardia de Goya, porque ela expõe aos nossos olhos o destino longínquo daquilo que esteve em jogo em 1789. O resultado é lido no quadro “Os fuzilamentos de 3 de maio de 1808”:


    O grupo ritmado e disciplinado dos solados do pelotão de execução representa uma racionalidade demente; a regularidade, a ordem (que deveriam marcar o triunfo dos princípios) vêm apenas regulamentar o exercício da violência. Pela obliquidade que Goya confere à cena, ele esconde o rosto dos hussardos franceses: estes só aparecem de perfil, contra a luz da sinistra lanterna colocada a seus pés; deles não percebemos senão o equipamento: fuzis, barretinas, correames, capotes, sabres. Ocupam o primeiro plano, mas tudo neles corresponde e se harmoniza com o céu noturno que domina o fundo da cena.


    A luz, em compensação, se liga e se associa ao grupo das vítimas, e mais particularmente ao homem do povo que a salva iminente vai abater: Goya soube dar ao seu rosto sem beleza a expressão simples que está ao mesmo tempo para além da coragem e do terror; de braços estendidos na atitude da crucificação, as mãos perfuradas, esse espanhol de traços grosseiros ganha de súbito a dimensão do Judeu eterno, do Homem humilhado pelo homem. Ainda que difundida logicamente a partir da lanterna, a luz, para o espectador, parece emanar da camisa branca do supliciado.
    Diante da vontade mecanizada do pelotão de execução, assistimos à tragédia da vontade vã, a impotência absoluta. Mas essa vontade vã, incapaz de desviar a morte, Goya nos faz pressentir que ela não poderia ser atingida nem destruída pela morte. Ele a eterniza... Aqui se trata de um homem obscuro, cujo nome e identidade não nos são transmitidos. Assim ficamos atentos ao valor mais elementar, à liberdade inseparável da existência mais comum... A tormenta e a tempestade, como também bala e o cutelo, anunciam o aniquilamento de nossa existência sensível, mas despertam em nós a certeza de escapar aos limites que ela nos atribui...
    Apenas pintores capazes de restituir ao mundo material toda a sua selvageria, toda a sua inextricável riqueza de cores, de luzes e de trevas mescladas... puderam fazer aparecer a invisível presença da “liberdade moral”.

(Starobinski, Jean. 1789, Os Emblemas da Razão, Cia das Letras, 1989, pág. 129-131)

Nenhum comentário:

Postar um comentário