quarta-feira, 17 de fevereiro de 2016

Bem aventurados os que fogem... (por Laryssa Queiroz)

Já são mais de 130 mil mortos na Síria! Morre outra família na travessia em bote ilegal! Não há lugar para os refugiados! Avisam, ameaçam e alertam todos os noticiários acerca do drama que se vive desde março de 2011 na República Árabe Síria. E isso nos inquieta e nos motiva a, ao menos por alguns instantes, de maneira empática, colocar-nos nos lugares destas pessoas que veem a guerra acontecer dentro de casa. Como se sente o sírio que precisa se esconder, na sua própria nação, de seus conterrâneos apenas por não proclamar a mesma fé que eles? Com que olhos enxerga o mundo a criança que tem sua família torturada e morta? Qual é o sonho atual daquele ancião que, quando moço, perdia-se nos seus pensamentos sobre o futuro?
Aproximo-me da dor destas pessoas para tentar, ao máximo, senti-la, como se no lugar delas estivesse, afim de observar o mundo que vivem, os dramas que sofrem e, só então, oferecer-lhes, ainda que na frialdade da palavra, um acalanto quente, daqueles que só recebemos de quem nos conhece por inteiro.

Deste momento de compenetração, percebo à minha volta, um cenário desolador. Para onde olho, há caos, medo e olhares revoltados presos em corpos resignados. Muitos já morreram, outros se foram, mas não se sabe o seu fim. O que fazer, então? Ficar no lugar onde estou habituada e esperar a morte ou arriscar a vida e o modo de viver em um caminho desconhecido que não se sabe qual é o fim?
Diferentemente do que se pensa, este conflito pode ser comum a qualquer indivíduo e não apenas aos sírios contemporâneos da guerra civil. Se todo ser humano passa por aflições, todos irão também, como aqueles, precisar refletir sobre a situação em que se está vivendo e tomar atitudes em relação a ela.
A guerra nos convoca a tomar uma posição. É diante da tragédia que nos obrigamos a procurar meios para estabilizar a situação nebulosa em que vivemos. Apenas conhecendo o caos é que desejaremos o mais harmonioso abrigo; um lugar de paz constante, onde não haja mais choro, dor ou morte.
Esse refúgio almejado, no entanto, não se estabelece no mesmo território bélico, está sempre longe do ambiente de miséria e desolação. Assim, para ter acesso ao abrigo, é necessário abandonar o lugar onde acontece a guerra. Por isso, o conflito se dá agora não somente na terra que guerreia, mas também naquele que é inquirido a tomar parte de um dos lados. Permanecer no seu lugar ou refugiar-se em terra estranha?

A necessidade de sair do meio guerra é clara, a vontade de distanciar-se dela é desejo constante, a esperança de encontrar o fim dos problemas nos motiva. No entanto, deslocar-se implica abandonar o que nos é comum, nossa casa, nossa história, nossa cultura, nossas leis, em prol de uma nova vida ainda desconhecida.

As expectativas nos consomem e podem nos fazer recuar. Já no meio do caminho, é necessário policiar-se para não se perder olhando para trás e fantasiando um passado feliz que nunca existiu.
É certo que em meio à guerra e, às vezes, até já tendo muitas milhas caminhadas, não se pode ver o abrigo. Ele só nos aparece quando as forças estão indo embora, as reservas de mantimento já se foram e os passos já ensaiam a próxima queda.
Na estrada, percebemos que é preciso deslocar-se, a paz tem um preço e se mostra como recompensa a quem deixa para trás a inércia de criar raízes em terreno de guerra.

Quem sai de sua ‘parentela’, porém, pode não chegar ao abrigo. Há sempre quem prometa um caminho mais curto, mais fácil e sem esforço. O que se autodenomina atravessador, conduz o que, por desespero, desiste de caminhar por toda a estrada, por atalhos inseguros que se tornam realmente um caminho mais rápido, mas, neste caso, à morte.

Não é assim a nossa vida? Não é preciso sair do ambiente da guerra que nos consome antes que ela mesma nos trague? Nossa caminhada não se distancia da realidade dos refugiados sírios. Nós, como eles, nos vemos perdidos e sem esperança no mundo que nos rodeia. Buscamos abrigo e nova vida, mas custa-nos abandonar os velhos costumes, arriscar-nos no caminho, alimentando a certeza do que não vemos, mas esperamos.
Como bem disse o salmista: Deus é o nosso refúgio e fortaleza, socorro bem presente na angústia (Salmos 46:1). Portanto, para conhecer o que nos oferece o esconderijo divino, é preciso despir-nos do que nos caracterizava como filhos da guerra.
Há porém uma grande diferença entre o refúgio que abriga os sírios e o que pode proteger todo homem, de qualquer lugar do mundo, perdido em seus flagelos. Naquele, você pode ser recebido com preconceito por não fazer daquele povo. Já neste, o Pai o recebe como quem o aguarda há muito tempo. De braços abertos, abraça o filho que tanto demorou a voltar à casa.


Quando se chega nesse novo lar divino, é que se descobre porque não se encaixava ao cenário de guerra, ao que estava habituado, mas nunca à vontade. Percebe-se que era imigrante em terra familiar e, só agora, reconhece o seu povo, sua cidadania, sua língua, sua lei e levanta com orgulho seu estandarte. Pode-se finalmente dizer: Lar Doce Lar.

quarta-feira, 10 de fevereiro de 2016

Quem é a ameaça? Quem é o inimigo? (I Sm 17.12-31)

      O pequeno e recém- nascido reino de Israel corria perigo. Os povos do Mar, conhecidos na bíblia como os filisteus, que dominavam a tecnologia do ferro, constituíam um perigo verdadeiro ao povo de Israel e ao seu Rei, Saul.
   Os exércitos dos dois povos se organizaram para a batalha. O Rei Saul convocou homens em idade de lutar por todo o reino.  De toda parte afluíram jovens para a guerra. Da zona rural da pequena Belém três jovens, filhos de Jessé, agora integravam as Forças Armadas israelitas: Eliabe, Abinadabe e Samá.

    Jessé, o pai dos rapazes belemitas, preocupado com os filhos decide enviar o filho mais jovem, que ficou cuidando das ovelhas, o ruivo Davi para levar mantimento para os irmãos, e claro, saber das novidades do front da batalha.
      Davi entregou sua encomenda ao Serviço de Intendência, responsável pela alimentação e logística do exército, e rapidamente foi conversar com os soldados para buscar informações do andamento da guerra. Não precisou de alguém lhe dizer o que estava acontecendo. Ele pôde testemunhar a aparição de Golias, o gigante filisteu da cidade de Gate, erguendo-se entre o exército do seu povo e afrontando o povo de Israel.

    Os soldados o informaram que haveria premiação e recompensa para o israelita que ferisse o filisteu. Mas o medo era tanto do gigante guerreiro, que ninguém pensava em ousar enfrentar Golias.  Davi parece não temer a ameaça dos filisteus encarnada nos três metros do gigante ao indagar: Quem é, pois, este incircunciso filisteu, para afrontar os exércitos do Deus vivo? 
     Definitivamente a coragem do pastorzinho de Belém começou a chamar a atenção dos soldados israelitas. O burburinho causado pela intrepidez de Davi chega aos ouvidos do seu irmão mais velho, Eliabe. O primogênito enche-se de ira contra o seu mano caçula, e lhe diz em tom de desprezo: Por que desceste aqui? E a quem deixaste aquelas poucas ovelhas no deserto? Bem conheço a tua presunção e a maldade do teu coração, que desceste para ver a peleja.
     Davi se surpreende com a ira do seu irmão e suas palavras provocativas e ferinas e lhe diz: Que fiz eu agora? Porventura, não há razão para isso?
     Parece-nos que no meio da guerra uma nova ameaça surge. Golias é esquecido, deixado de lado, embora permaneça lá, afrontando, gritando, perigosamente ameaçador. Para Eliabe o inimigo agora era seu irmão caçula. Ele se ira contra Davi, ele decide humilhá-lo com suas palavras, destruí-lo verbalmente. De repente, o inimigo não é mais Golias, passa a ser o seu irmão de sangue, filho de seu pai, que estava ali para trazer-lhe mantimento. O foco agora é acabar com Davi.
     Essa história se repete com muito mais frequência do que imaginamos. Embora estejamos frente a frente com o gigante, e nossas fileiras indiquem que estamos prontos para  o enfrentarmos, esquecemos quem é a verdadeira ameaça e estamos lutando contra  nosso irmão, irados conta ele, tentando destruí-lo com palavras e ações. O gigante fica dando gargalhadas com nossas trapalhadas, e nem temos consciência disso.
    Nos meios acadêmicos, jovens apologistas erguem seu aparato bélico em sua trincheira teológica para atacar uma tradição teológica diferente entendendo que ali está seu inimigo. Nos púlpitos, pastores disparam mísseis homileticamente preparados para apontar os erros e equívocos da igreja mais próxima, entendendo que ali está o inimigo. Dentro das igrejas as disputas políticas se acirram e as fileiras se formam para batalhas que fariam animar Napoleão Bonaparte!
    É tempo de pedirmos ao Senhor discernimento para entendermos quem é o inimigo. É tempo de deixarmos de ser Eliabe. E quantas vezes somos Eliabe! O gigante domina a cidade e as pessoas. Jovens drogados,  assaltando, matando... É tempo de acendermos a cidade, derrotando  o gigante que a tudo escurece e amedronta. Vamos enfrentá-lo como Davi, não por nossa própria força, mas Em nome do Senhor dos Exércitos, porque DO SENHOR É A GUERRA!
    Enquanto não aprendermos a discernir quem é o inimigo, quem é a verdadeira ameça, Golias nunca será vencido!!!

segunda-feira, 1 de fevereiro de 2016

Jesus, aquele que sabe o que há no homem, uma possível chave hermenêutica para o Evangelho de João

    Uma chave hermenêutica é um pressuposto, um método de interpretação que permite uma melhor compreensão do texto, embora realize naturalmente uma seleção do que se enxerga e se aproveita do mesmo. Os estudiosos concordam que Lutero utilizava como chave hermenêutica das Escrituras a doutrina da salvação pela fé, enquanto Calvino fazia uso da ênfase na soberania absoluta de Deus.

     Não sou biblista, nem filho de biblista, mas preciso alimentar meu pequeno rebanho, na querida congregação de Quintino Cunha, e para isso preciso mergulhar nas complexidades do texto bíblico. Nessas leituras, contemplando especificamente o Evangelho de João, me saltou os olhos o versículo 25, do capítulo 2: “e não necessitava e que alguém testificasse do homem, porque ele bem sabia o que havia no homem”.
     O próprio evangelista pode nos ter dado a chave hermenêutica para melhor entender o seu recorte da história de Cristo.

     De repente a seleção de eventos registrada por João em seu evangelho passou a fazer ainda mais sentido. Os fatos parecem ter sido organizados a partir da perspectiva que o Logos Divino sabe o que há no homem. Eis uma probabilidade de uma chave hermenêutica para o Evangelho de João. Compartilhei essa descoberta em forma de pregação no culto de domingo:
    Ainda no capítulo 1 temos o episódio de Natanael, que trazido por Felipe é  surpreendido pelo diagnóstico de Jesus: Eis aqui um verdadeiro israelita, em quem não há dolo (Jo 1.47). Descobre que Jesus já o tinha visto meditando debaixo da figueira. Este sinal é suficiente para que ele creia que Jesus é o Filho de Deus (Jo 1.48-49).
    O diálogo com Nicodemos é emblemático. Jesus dá pouca atenção à saudação elogiosa do príncipe dos judeus, nas primeiras sentenças do capítulo 3, mas insiste na verdade que Nicodemos precisava nascer de novo. Porque Jesus conhecia o coração do velho mestre.
    O encontro junto à fonte de Sicar, com a mulher samaritana pode ser melhor visualizado a partir da perspectiva que Jesus é o que conhece o que há no homem. Jesus entabula uma conversa com uma mulher de moral duvidosa, mas enxerga nela alguém sinceramente faminta por transformação. Aí está uma verdade muito importante: Aquele que conhece o que há no homem, todas as suas sujeiras e equívocos, também é o mesmo que busca alcançar este homem.

   Os exemplos continuam ao longo do evangelho.  Jesus também confronta seus seguidores e diz: Vós me buscais não pelos sinais que vistes, mas porque comestes do pão e vos saciastes (Jo 6.26). O conhecimento da motivação do coração dos homens é o que diferencia o cristianismo de qualquer outra religião. O cristão não é um mero praticante de ritos e ações prescritos nos livros santos. É alguém cujo coração e mente estão voltados para o Senhor, pois tem crido e conhecido que ele é o Cristo.
     Ele sabe que um dos que ele escolheu para estar mais próximo a si, era um enganador (Jo 6.70). Ele conhece cada um dos homens que portavam uma pedra para executar a mulher adúltera (Jo 8.7).
      Ele faz as perguntas mas, de antemão conhece as respostas, como foi o caso de Simão Pedro, no conhecido diálogo “Tu me amas?” (Jo 21.15-17).
    Uma chave hermenêutica pode funcionar de forma simplificadora ou redutora, mas traz ainda mais luz e significado às passagens que lemos. Professor Bruce, em seu comentário no Evangelho de João diz:
    “Aquele que é o Verbo encarnado capta imediatamente os mistérios e complexidades da natureza humana. Ele não depende de palavras faladas, como indicadores dos pensamentos e sentimentos íntimos; as profundidades ocultas de cada coração estão expostas diante de sua avaliação penetrante”.  

    Lembrei de um pensamento que li quando ainda era garoto: “Amigo é alguém que te conhece a fundo e apesar disso te ama”. Nunca esqueci. Jesus é este amigo!