segunda-feira, 10 de outubro de 2011

Betesda: Queres ficar são?

     Caminhando pelo lado árabe das ruas da Cidade Velha de Jerusalém muitas coisas chamam a atenção do  viajante: O colorido das lojas de tapetes árabes, o cheiro forte do suco de romã vendido a dez shekels (NIS 10), as procissões compostas pelos grupos de peregrinos que se dirigem à Igreja do Santo Sepulcro (alguns levando uma cruz, não muito pesada, mas uma cruz!) e caminham pelas estações da Via Dolorosa...
    No lado judeu da Cidade Velha dezenas de lojinhas vendendo os principais suvenirs de Jerusalém: menorás (candelabros), kipás... para quem não sabe o kipá é aquele pequeno chapéu usado no alto da cabeça dos judeus. Seu uso diz respeito ao temor a Deus, pois a Divina Presença está sempre acima de nós, e foi estabelecido no Talmude há muito tempo.

    Para quem crê a cidade de Jerusalém é um ambiente de catarse. Ali está o Muro Ocidental, conhecido como Muro das Lamentações, que é uma parte do Muro do Templo, no Tempo de Herodes. É um lugar sagrado do judaísmo. Um ponto de contato do Eterno com o seu povo na sua Santa Cidade.
    As escavações aqui e ali apontam para um fato narrado nas Escrituras, como o Túnel de Ezequias (II Rs 20.20)... num outro momento falaremos sobre isso.
   Ali também foi o lugar em que o Senhor Jesus viveu sua paixão e morte. O Mestre Galileu que exerceu um profícuo ministério na região em torno do Mar da Galiléia, vem à Jerusalém, onde os grandes eventos da nação de Israel ocorrem...
     Em minhas caminhadas por Jerusalém um lugar foi muito marcante para mim.  Perto da Porta de Santo Estêvão, também conhecida como Porta dos Leões, está a Basílica de Santa Ana. À frente da Basílica uma grande escavação, indicando que ali já fora um balneário, uma piscina, um tanque... O Tanque de Bestesda!

       No capítulo 5 do Evangelho de João podemos ler:
   “Em Jerusalém, perto da porta das Ovelhas, há um tanque, chamado Betesda na língua dos hebreus, o qual tem cinco pórticos. Neles ficava uma grande multidão de doentes, cegos, mancos e paralíticos, deitados... Estava ali um homem enfermo havia trinta e oito anos. Vendo-o deitado e sabendo que vivia assim havia muito tempo, Jesus lhe perguntou: Queres ficar são?” (Jo 5.1-6)
    Muita gente já questionou a legitimidade da narrativa do Evangelho de João, bem como suas descrições e os discursos nele contidos.  Este documento já foi acusado de ser carregado de influência grega (começando pelo Logos, que era Deus e estava com Deus), já foi proposto que os dados existentes no mesmo não poderiam ser levados muito a sério. Na melhor das hipóteses, seria um documento puramente teológico sem qualquer embasamento histórico.
    A precisão em que o Evangelho de João fala de lugares e de situações, inclusive sem qualquer paralelo nos sinóticos, é digna de nota. Entretanto, críticos afirmavam que este acontecimento, bem como outros registrados neste Evangelho, não passavam de ficção, afinal, não havia indícios arqueológicos ou em qualquer fonte extra-bíblica da existência do tal Poço de Betesda.
    Embora a tradição afirmasse que ali teria sido o Poço de Betesda muitos contestavam. Entretanto, cuidadosas escavações no século XX trouxeram à luz as piscinas da época de Jesus. Eram duas piscinas separadas por um pórtico, ou alpendre, totalizando assim os cinco alpendres citados pelo Evangelho. Tempos depois um Rolo de Cobre descoberto nas Cavernas de Qumran trazia a citação de um lugar denominado Bethesdataym (Casa dos Dois Derramamentos), uma variante de Betesda e aludia às suas cisternas.

   Diante do Poço de Betesda meu coração bate mais forte. Visualizo o Senhor em diálogo com o enfermo... e há uma coisa que me intriga muito mais do que as minúcias arqueológicas...  é a pergunta de Jesus feita ao homem paralítico: Queres ficar são?
    Não seria uma pergunta sem propósito para um homem doente há 38 anos?
    A pergunta não é descabida quando entendemos que a ação de Cristo está ligada ao desejo humano, à vontade do homem. O cego de Jericó grita por Jesus, e o Mestre pergunta: O que queres que eu te faça? (Lc 18.41).
    Não são todos que desejam emergir de um processo de adoecimento, isto porque existem ganhos aparentes, vantagens efêmeras decorrentes da manutenção do sofrimento. Desde a forma como se é visto: um coitado, um necessitado, alguém que desperta a compaixão alheia... como também a forma como o homem se vê: dependente, não responsável por si... Ainda hoje há muitos doentes que não querem abrir mão de sua doença para não perderem o benefício eventual do INSS. É a vontade de que o benefício temporário torne-se permanente à custa de uma enfermidade, que precisa ser real... ainda que de fato, tenha se tornado imaginária!
   Muitas vezes não se consegue sair das compulsões, dos medos, das reações desproporcionais, dos mecanismos de defesa, do processo em geral de adoecimento, porque não se quer perder os lucros passageiros decorrentes da dor.
    Queres ficar são? É preciso abrir mão dos ganhos aparentes, é preciso mudar... é preciso querer para que haja a cura. É preciso deixar de lado a vantagem ou o benefício (seja este do INSS ou de outra fonte) que se está tirando disso. É preciso querer ficar são !!!
   Mas enfermidades não são apenas do corpo... São também da alma, do espírito. É preciso querer ficar são.
    A história de Zaqueu é paradigmática para ilustrar esta verdade. Um publicano desonesto, que enriqueceu por suas práticas ilícitas tornou-se marginalizado pela sociedade por sua conduta detestável... e também ficou à margem de um relacionamento com Deus... Um doente... uma alma mendicante... Mas como abrir mão de todas as vantagens adquiridas com aquele tipo de vida? Ficar são significaria abrir mão do dinheiro fácil desonestamente conquistado.  Não há como ficar são sem encarar as perdas decorrentes do fim dos benefícios do adoecimento!
     Zaqueu decide que ficar são vale a pena, e todas as efêmeras vantagens decorrentes de sua vida doentia poderiam ser deixadas para trás. Vai então procurar Jesus! Ao encontrar com o Senhor, Zaqueu abre mão dos seus bens (desonestamente conquistados) e decide restituir com folga aos que por ele foram prejudicados... Agora ele está são... e Jesus sorri, pois veio “buscar e salvar o que se havia perdido” (Lc 19.1-10).  
    Infelizmente, nem todos querem ficar sãos, como Zaqueu... os benefícios da enfermidade falam mais forte, as estruturas já se acomodaram e se adequaram ao sofrimento, à dor, à solidão espiritual...
    Em Betesda, ouvi de novo Jesus indagando: “Queres ficar são?”

        Pensei em tornar mais viva esta nossa conversa através de um vídeo, com as imagens do que falamos ao som da música Betesda, de Sérgio Lopes:

sábado, 1 de outubro de 2011

Um lugar chamado Ein Gedi

   Há muitos lugares surpreendentes no mundo. Um deles eu tive a oportunidade de conhecê-lo agora, em nosso retorno a Israel. Trata-se de Ein-Gedi, nome hebraico para “Fonte dos Cabritos”.  Além do nome pomposo, o lugar é fartamente citado na Bíblia, e em situações que atiçam nossa imaginação.
    Ein Gedi é um lugar de povoação muito antiga, o que é atestado por sua citação entre as cidades de Judá ainda nos tempos da conquista de Canaã (Jos 15.62).  Escavações conduzidas desde 1949 confirmam a antiguidade do sítio. Arqueólogos encontraram nas imediações um templo antigo e o dataram do período calcolítico (entre 4.300 a 3.300 a.C). Ossos e cinzas de animais encontrados em covas circulares eram os remanescentes dos sacrifícios ali oferecidos.
     Onde seria esse lugar? Onde se situa Ein Gedi?
     Há pistas no texto bíblico sobre sua localização. O profeta Ezequiel é quem nos fornece a primeira dica:
   Na visão das águas purificadoras, registradas no capítulo 47, Ezequiel vê águas que fluem do Templo se derramarem, saírem pelas portas de Jerusalém, e descerem até o Mar Morto (Ez 47.8). Ali, um lugar onde não há qualquer tipo de vida, as águas cheias de minerais do mar tornar-se-iam doces,  e enxames de peixes povoariam o Mar, o que atrairia pescadores e estes estenderiam suas redes “desde Ein Gedi até Ein Eglaim” (Ez 47.10).  
   Na descrição de sua visão, Ezequiel situa Ein Gedi na região do Mar Morto.
   Estávamos em Tiberíades, às margens do Mar da Galiléia, e dirigimos aproximadamente 200 km rumo ao Sul, seguindo a Rodovia 90, que corta o país de Norte a Sul (da fronteira com o Líbano, até a fronteira com o Egito, em Eilat, no Mar Vermelho).

   No Mar da Galiléia já estávamos a pouco mais de 200 metros abaixo do nível do mar, em pleno “Vale da Grande Fenda da África”. Este é um dos grandes caprichos do Criador:  uma gigantesca falha geológica que estende-se desde o vale do Jordão, no norte de Israel, até Moçambique, num incrível total de 6.400 quilômetros!
   A Rodovia 90, contorna a margem ocidental do Mar da Galiléia e continua seguindo a Grande Fenda, através do Vale do Jordão, que enfim deságua no Mar Morto. Do mar da Galiléia ao Mar Morto descemos mais 200 metros e atingimos o ponto mais profundo da Terra, 400 metros abaixo do nível do mar!
   Seguimos margeando o Mar Morto por alguns quilômetros e pudemos perceber o quão inóspito é aquele lugar.  O sol é intenso, a estrada corre espremida entre o Mar Morto e os penhascos marrons que caracterizam os paredões da Grande Fenda em sua região de maior profundidade.
    Porém, seguindo as indicações do profeta Ezequiel estamos próximos a Ein Gedi.

    Se hoje o Deserto de Judá é pouco povoado, imagine na época de Davi! Era quase totalmente desocupado... Seria então o lugar ideal para um homem esconder-se, desde que houvesse água disponível... O Primeiro Livro de Samuel então nos dá outras dicas da localização de Ein Gedi:
    Um lugar de fortalezas (I Sm 23.29), no deserto (I Sm 24.1), um lugar de penhascos e de cabras monteses (I Sm 24.2), onde havia caverna (I Sm 24.3).
    Se existe um lugar no deserto onde podemos encontrar seres vivos, no caso, cabras monteses, e seres humanos que fizeram dali seu lugar de habitação, então este lugar tem água. Estamos falando de um oásis, o maior oásis na margem ocidental do Mar Morto: Ein Gedi.
    Chegamos então em Ein Gedi, onde nos encontramos com o passado! Fiz o registro no hotel, municiei a mochila com água e paguei a entrada na Reserva Natural Ein Gedi.
    Muito cedo entendi o porquê do nome do lugar: “Fonte dos Cabritos”. Pude ver cabras monteses, pequenas ou maiores caminhando e pastando tranquilamente... Pastando? Sim, no cenário quente e seco, uma corrente permanente de água garante vegetação que quebra a monotonia marrom da paisagem e irrompe um verde que alimenta as cabras monteses.

    O cenário corresponde perfeitamente à descrição do texto de I Samuel. Fugindo de Saul, Davi procura esconderijo nestes penhascos cheios de cabras monteses (I Sm 24.2).

     Vou seguindo o caminho da água através do Wadi David pois acredita-se que foi por aqui que Davi com seus homens procurou esconderijo. Quando se lê I Sm 23.29, encontramos: “Davi subiu e permaneceu nas fortalezas de Ein-Gedi”. O que seriam estas fortalezas? Uma cidade murada? Algum tipo de estrutura militar? Não, não. Olho em torno e percebo que as fortalezas de Ein Gedi eram os inacessíveis refúgios nas rochas da montanha!

    Aqui, posso entender muito melhor as palavras do jovem Davi expressas no Salmo 18.2. Para Davi, Ein Gedi significou livramento, proteção, cuidado de Deus através daquela perene fonte de água, fortaleza, refúgio:
   “O Senhor é a minha rocha, a minha fortaleza e o meu libertador; o meu Deus, o meu rochedo, em quem me refugio; o meu escudo, a força da minha salvação e a minha torre de proteção.”
    Aqui em Ein Gedi, estas palavras assumem um sentido ainda mais forte!   

      Mais acima da pequena Cascata de Davi está a Caverna de Dodim. Lembro então da narrativa pitoresca e interessante, que bem pode ter acontecido aqui:

    Buscando um lugar para aliviar uma aguda pressão intestinal, o Rei Saul fez uma breve pausa em sua caça ao seu genro Davi, ao encontrar uma caverna nos penhascos de Ein Gedi. Entrou na caverna,  e imediatamente, aproveitou a privacidade e escuridão do lugar para satisfazer suas necessidades fisiológicas (I Sm 24.3), sem saber que era assistido por Davi e seus soldados!!!!!!! Que dureza!  Muitas testemunhas para a defecada real... Enquanto realizava sua obra fecal, Saul não percebeu que seu manto estendido no solo teve um pedaço de sua orla cortado por uma espada misteriosa.  
  Ao sair, o Rei Saul foi supreendido pelo grito de Davi que com uma ponta de seu manto na mão, ratificava sua lealdade e fidelidade (I Sm 24.8-15).

    Não podemos deixar de falar sobre outra citação importante feita no texto bíblico acerca de Ein Gedi. Trata-se de um trecho do Cântico dos Cânticos: “O meu amado é para mim como um ramalhete de flores de hena das vinhas de Ein Gedi” (Cant 1.14).
   As vinhas incluem uvas, mas não se limitam a essas frutas. Segundo o texto havia em Ein Gedi plantações de hena, cujas flores juntas num ramalhete eram sinônimo de beleza, o que mais alto poderia existir em padrão estético.  Hena é uma especiaria ainda hoje utilizada como matéria prima para produção de cosméticos. As flores de Hena de Ein Gedi eram as melhores das melhores...
   Escavações em Ein Gedi encontraram instalações industriais nas casas, as quais foram interpretadas pelos arqueólogos como oficinas para preparação de um produto exclusivo – talvez um perfume de bálsamo, o qual, pelo que se sabe, foi o produto mais importante dessa região durante o período do segundo templo.
   Além de tudo, Ein Gedi era a Paris dos cosméticos de Israel... a Sulamita sabia o que dizia, em comparar as flores de Ein Gedi com a beleza do seu amado. Ninguém melhor de que uma mulher para avaliar tais coisas!