sexta-feira, 14 de janeiro de 2011

Sobre perdas... e alicerces

Acabei de chegar do sepultamento do meu avô, em Recife. Ele era o último de meus avós ainda vivo... A última ponte  que unia passado e presente se foi!
    Segurei a alça de caixão de meu avô Justo, junto com outros primos e parentes, e colocamos seu corpo inerte no jazigo da família Santana Nunes, no Cemitério São José, em Paulista, ao lado de minha avó Maria, que fora sepultada ali há exatos 1 ano e 4 dias! Os Santana Nunes (João e Ester) foram amigos dos meus avós durante suas vidas, e queriam estar juntos na morte. Ali estão dois casais amigos, que vieram a aparentar-se quando minha tia Ruth casou com João Santana Filho. Tiveram netos em comum, envelheceram e foram morrendo e separando um do outro, para depois se ajuntarem! O primeiro foi lá sepultado há 31 anos, e esperou sem pressa os demais que a ele se juntaram... um a um.
   Rubem Alves diz que tem medo da morte... Muita gente tem. Eu não tenho medo da morte. Acho-a misteriosa, às vezes caprichosa, mas não amedrontadora! Achei muito interessante a vontade de um casal amigo compartilhar o jazigo com outro. É uma amizade que transcende a existência terrena. Ainda se fazem amigos assim?
    Pensei em meu avô que desaparece do palco terreno e me deixa diante dos holofotes da vida com seus desafios. E então, me veio um entendimento análogo ao hino que meu primo Clevsom cantou na cerimônia fúnebre:
Não se pode matar
A semente germina
Ela não morrerá
Nem se perde no chão
Se alguém a pisar
Destruindo o jardim
Ela renascerá
A semente é assim.”
    A semente desaparece sob o solo onde foi plantada... Nunca mais ninguém a verá. Ela porém não está perdida, nem tampouco desapareceu. Ela não apenas renascerá na Ressurreição do Último Dia, como diz o Credo Atanasiano. Meu avô como semente renasce em cada filho, em cada neto que deixou, em cada pessoa com a qual conviveu.
    Pensei em mim, como seu neto.  Como galho dessa semente que aos poucos foi desaparecendo, até fecharmos plenamente o jazigo dos Santana Nunes com o seu corpo no caixão cheio de flores, ao tempo em que lhe dávamos o derradeiro adeus entre lágrimas.
    Pensei nele como um alicerce... Eu me lembro quando meu pai construiu nossa casa de alvenaria em substituição à nossa velha casa de taipa. Me lembro da grande vala cavada que aos poucos foi sendo preenchida com tijolo, pedra e cimento... Era o alicerce. O alicerce era profundo e “reforçado”, para a possibilidade de se construir futuramente um andar superior, argumentava meu pai.
     Depois as paredes foram subindo, a casa foi tomando forma e o alicerce foi cuidadosamente enterrado... Quando se olhava a casa, com seus cômodos, portas, janelas, ninguém se lembrava que havia algo sobre o qual a construção tomara forma. 
     Pensei em meu avô como o  alicerce para a casa que eu estou me tornando:   Um alicerce de honestidade, trabalho, dedicação à família, respeito pelo outro, amor pelos necessitados, fidelidade, altruismo.
     Vi uma velhinha que chegou logo cedo ao velório: Era uma velha amiga. Indaguei se estou sendo capaz de fazer amizades, que se conservem mesmo quando eu nada tiver a oferecer! Numa sociedade onde a consideração é tão pouca, meus alicerces gritam pelo valor do outro, não pelo que ele possa oferecer, mas pelo que ele é.
     Um antigo aluno da Escola Bíblica Dominical fez questão de falar, minutos antes do sepultamento, do seu querido professor Justo. Meu avô era um leigo, simples, pouco escolarizado, mas tinha um imenso amor por Deus. No lugar onde congregava já como ancião, ensinava na classe dos jovens. Era sempre cheia sua classe. Por que? Era um erudito? Não. Mas era um homem que ensinava com o coração, por isso os jovens gostavam de ouvi-lo. É... por isso meus alicerces clamam por uma mensagem que seja de coração para coração!
     Não há  herança a ser repartida. Como falei, foi sepultado no jazigo de fiéis amigos. Mas há paredes erguidas a partir dos alicerces desaparecidos sob o chão. Há árvores frondosas que nasceram a partir da semente que não existe mais:
      A sabedoria hebraica expressa na poesia profunda dos Salmos diz:  “O Justo florescerá como a palmeira, crescerá como cedro no Líbano... Na velhice ainda dará frutos... para proclamar que o Senhor é Justo...” Sl 92.12-15

terça-feira, 4 de janeiro de 2011

Céu azul, ou mar bravio? Quando chega a dificuldade...

    
    Eu cresci ouvindo um hino memorável cantado por Feliciano Amaral, que ficou impregnado na minha mente e no meu coração. Os mais antigos talvez lembrem: Eterno Fanal. Posso dizer de cor ainda os versos dessa canção tão profunda e que continua a me tocar:

Noite azul céu sereno... Um barco pequeno...
Vou deslizando no mar, e a brancura da lua
Nas águas flutua, Numa beleza sem par
De longe parece, ouvir-se uma prece
Do vento das ondas, da espuma que em  véu
Emoldura o caminho que passa o barquinho,
Seguindo as estrelas, que o guiam pro céu...

            O cenário é perfeito! Um barco navegando num mar calmo, com o reflexo da lua a flutuar na água... E o barco do cristão vai seguindo as estrelas com destino ao céu. Belíssimo, lindo, inspirador... mas momentâneo,  uma realidade passageira, uma calma temporária. Por que passageira? Porque a vida não é um conto de fadas com tudo no lugar, e sem tempestades ou sobressaltos, ou imprevistos, ou inesperados.
                Infelizmente muitos cristãos entendem que é tarefa de Deus lhes garantir um cenário sem sobressaltos. Uma vida tranqüila de calma e felicidade. Isentos de perigos, de dor, de sofrimento, de sustos, de decepções... Mas será assim? Não é isto que a canção nos diz? A canção nos diria apenas isso, se não houvesse outra estrofe, outros versos, temíveis, talvez até indesejáveis, mas tão reais, que a inspiração do poeta beirou o realismo cotidiano:

Mas em dado momento... transforma-se o vento...
Cessa da lua o clarão... e o mar tão bravio...
É um desafio, ao barco sem direção,
Com voz de lamento, do meu pensamento,
Orei ao meu Mestre com fé sem igual,
 E voltou a bonança, vitória se alcança
Olhando pra Cristo, o Eterno Fanal ! 

       O que é isso? Um cenário que de repente é alterado de forma substancial, um mundo organizado e equilibrado que repentinamente se põe de pernas pro ar. Como Deus permite isso? Que a morte atinja aos nossos... O câncer nos devore silenciosamente... A traição aconteça debaixo de nossos olhos... A injustiça inesperadamente nos atinja no trabalho... Amigos chegados se revelem em traidores... Os filhos de repente enveredem em caminhos duvidosos... Como? Por que?
        Um dia Jeremias está às voltas com Deus tentando entender as misérias que lhe rodeiam, embora seja ele um homem fiel (Jer 12.3), quando o Todo-Poderoso lhe faz uma pergunta extremamente pertinente:
“Se te fatigas correndo com homens que vão a pé, como poderás competir com os cavalos? Se tão-somente numa terra de paz estás confiado, como farás na enchente do Jordão?” (Jer 12.5)
        A indagação divina faz-nos pensar: A mudança do cenário, seja de que forma for, é uma realidade, é uma constatação. Não nos foi prometido que teríamos um idílico cenário em nossa viagem pelo Mar da Vida.  As tempestades são um fato! Não podemos nos cansar com as pequenas coisas da rotina (correndo com os homens que vão a pé), pois a qualquer momento podemos ser desafiados a competir com aqueles que andam a cavalo! Isto é, problemas e desafios muito maiores que os cotidianos já conhecidos.
            Deus não passa a mão na cabeça de Jeremias, e lhe diz, tudo vai ficar bem, não vai acontecer nada. Não, senhores. Deus responde que o que ele já sofreu não é nada comparado com o que ainda vem. Ele corre com homens a pé... o que dizer quando correrá com os que andam a cavalo?
           Se tão somente numa terra de paz estás confiado, como farás na enchente do Jordão?  A planície de aluvião do Rio Jordão, coberta de vegetação densa, era covil para animais selvagens, inclusive o leão asiático, e na primavera ficava parcialmente inundada (Jos 3.15).
            Alguns caminhos são evitados por nós, em face de um proceder sábio, outros são inevitáveis. Em algum momento enfrentaremos os perigos da Planície do Jordão, talvez quando ela estiver inundada, talvez diante dos perigos de animais selvagens que provocam os nossos mais profundos medos...
             Se estivermos prontos apenas para competir com os que andam a pé, ou entendermos que apenas estaremos em terra de paz, como enfrentaremos as dificuldades? 
             O sábio deixou-nos um provérbio lapidar: “Se te mostrares frouxo no dia da angústia, a tua força será pequena”, ou noutra tradução, “Se te desanimares em tempos de dificuldades, serás fraco...” (Pv 24.10)
            Diante do desafio da tormenta inesperada, o poeta não nega que está em perigo, afinal o Mar tão bravio é um desafio ao Barco sem direção. A beleza do clarão da Lua não mais se vê, apenas a tempestade. Mas a resposta não é o desespero, não é fazer de conta que nada está acontecendo. A Fé é a resposta do crente para a dificuldade: Orei ao meu Mestre com fé sem igual... 
            Outro poeta também foi inspirado em cena como esta para escrever o hino 328 do Cantor Cristão: Sossegai!
            Ó Mestre! O mar se revolta: As ondas nos dão pavor.
           O Céu se reveste de trevas.
Mestre, na minha tristeza estou quase a sucumbir:
A dor que perturba minha alma, Oh! Peço-te, vem banir!
 Pereço sem ti, oh! Meu Mestre, vem logo, vem me acudir.
Dia da angústia, da dificuldade, é parte da vida de todos nós. Não seja fraco, não seja frouxo. Tenha fé.
Nas orientações finais de Jesus aos seus discípulos antes de sua morte ele disse: “No mundo tereis tribulações, mas tende coragem. Eu venci o mundo.” (Jo 16.33)
Jesus trilhou o caminho da corrida com os cavalos, e da enchente do Jordão. Ele sofreu o escárnio do povo, a traição de Judas, a negação de Pedro, a negligência dos amigos mais chegados na hora em que ele mais precisava (Nem uma hora pudestes velar comigo? Mt 26.40), a injustiça dos interesses político-religiosos, o desamparo do Pai (Mt 27.46)... Eu venci, disse Ele. Tende coragem! Afinal, vitória se alcança, olhando para Cristo o Eterno Fanal!

segunda-feira, 3 de janeiro de 2011

Cordas humanas: Laços de Amor

          

          “- Sirvo a Deus porque tenho medo do inferno.
            - Continuo casado com meu marido porque tenho medo de morrer de fome.
            - Estou casado com minha mulher porque assumi essa obrigação diante de Deus e da Igreja.”
           Estamos falando de porquês. Estamos falando de motivos. Estamos falando daquilo que nos liga, que nos vincula, nos relacionamentos.
            O que me mantem ligado a Deus? O medo do inferno?
            O que me mantem ligado ao meu cônjuge? A obrigação legal do matrimônio? O medo da incerteza de viver sozinho?
            Perguntando de outra forma:
            Qual o vínculo que nos une a Deus?
            Qual o vínculo que nos une enquanto família?
            Quase nunca paramos para pensar nestas coisas, mas elas são de grande importância para nossas vidas. Vínculos, elos de ligação.
            Passamos a integrar nossa  família quando nascemos, ou quando escolhemos aquela pessoa para casar. Também nos vinculamos à família de Deus quando nascemos de novo, quando escolhemos seguir a Cristo.
           Houve um fato inicial que nos uniu, que nos integrou, que nos sinalizou uma identificação comum. Esse fato inicial ficou no passado, faz parte da nossa história: Foi a paixão e o amor ardente por aquela moça ou aquele rapaz, que resultaram num lindo casamento. Foi o nascimento daquele filho esperado que nos fez sentir pela primeira vez a alegria de ser pais. Foi a experiência de conversão, o dia em que aceitamos Jesus, a partir do qual passamos a ser seguidores dEle.
            Mas, e daí? E então?
            Passamos a integrar uma família, isso significa viver junto. Isso significa compartilhar o cotidiano. Significa servir uns aos outros. Significa conhecer-nos em maior profundidade. Conhecer as exigências do outro, abrir mão de muita coisa para poder compartilhar a vida em comum.
            Eis a nossa pergunta inicial: O que nos liga uns aos outros? O que nos mantem vinculados?
            Por que permanecemos casados? Por que permanecemos unidos a Deus?
            O medo tem sido o principal vínculo de muitos relacionamentos.
            Muitos estão unidos a Deus por medo do inferno. Muitos estão unidos a suas famílias por medo das incertezas da vida, ou da condenação das pessoas (o que vão dizer de mim?).
             Mas o medo é um vínculo pesado demais, duro demais, angustiante demais. A vida se torna demasiadamente pesada quando o vínculo é o medo. Quem está ligado ao outro pelo medo, na realidade é um prisioneiro do medo. Alguém dizia que “A única liberdade real é a liberdade de não ter medo” (Aung San Suu Kyi).                    
            O medo, a obrigação (sou alguém que assume as responsabilidades, sou portanto obrigado), o vínculo legal (me casei com você de papel passado), podem ser  laços fortes, difíceis até de serem quebrados, mas não são os vínculos ideais. Porque não nos tornam felizes, nos tornam prisioneiros do medo, da obrigação, da lei.  
            Qual é a alternativa? João nos responde:
            No amor não há medo, pelo contrário, o perfeito amor elimina o medo, pois o medo implica castigo, e quem tem medo não está aperfeiçoado no amor.” I Jo 4.18
            Somos desafiados a cultivar outro vínculo, o vínculo do amor. Mas o amor é um laço frágil, não tem a força da legalidade, não apresenta o castigo do medo, não sinaliza com a obrigação.
            De que então, se utiliza o amor para consolidar os vínculos entre Deus e o homem, entre as pessoas de uma família? Se não faz uso do castigo, nem da legalidade, nem da obrigação?
            Deus nos responde através do profeta Oséias contando-nos a história de seu vínculo de amor para com seu povo, Israel:
           Quando Israel era menino, eu o amei, e do Egito chamei o meu filho. Quanto mais eu os chamava, mais se afastavam de mim; sacrificavam aos baalins e queimavam incenso às imagens esculpidas. Porém eu ensinei Efraim a andar; eu o carreguei nos braços; mas eles não entendiam que era eu quem os curava. Eu os atraí com cordas humanas, com laços de amor; fui aquele que lhes tirou o jugo do pescoço e me inclinei para alimentá-los.” (Os 11.1-4)
            Como se consolida o vínculo do amor?
            Em primeiro lugar, amando. “Quando Israel era menino, eu o amei”. Amando incondicionalmente, amando sabendo das exigências que este amor nos faz. Exigências de paciência, afinal nem sempre este amor é correspondido na mesma intensidade. Amando mesmo sem ser correspondido. Quanto mais eu os chamava, mais se afastavam de mim.
            Em segundo lugar, com demonstrações de afeto: “Eu ensinei Efraim a andar, eu o carreguei nos braços...” Quem ama se importa com o crescimento do outro, está  disposto a carregá-lo nos braços. Não mede esforços em fazer algo pelo outro. Embora que não haja reconhecimento pelo que se faz.
            Em terceiro lugar, reforçando os laços de amor. Os laços de amor são frágeis, podem ser ignorados, esquecidos, negligenciados, por isso são chamados de cordas humanas. São atos de amor realizados pelos homens, que o próprio Deus afirma que também os utilizou para atrair os homens.
            Em quarto lugar, aliviando e alimentando. “Lhes tirou o jugo do pescoço e me inclinei para alimentá-los.” Precisamos nos importar de tal maneira que busquemos aliviar o outro, tirando-lhe o jugo do pescoço, e alimentando-o com amor, com afeto.
            Percebem a fragilidade destes laços? A humanidade destes vínculos?
            Deus poderia atrair o homem com a ameaça do castigo, mas prefere atraí-lo com cordas humanas, com laços de amor. Para atrair a humanidade, Jesus faz a maior demonstração de amor. Morre na cruz, em lugar do homem. Esta é a grande demonstração do amor de Deus (Jo 3.16). E Jesus afirma: “Quando for levantado da terra, atrairei todos a mim” (Jo12.32).
           Este Deus que atrai o homem com demonstração de amor, também quer que estejamos vinculados a ele, pelo amor.  O fariseu Simão estava vinculado a Cristo pelos laços da obrigação, mas de repente percebe que uma mulher pecadora estava vinculada ao Mestre pelo amor:
            Vês esta mulher? Entrei em tua casa, e tu não me deste água para os pés; mas ela os molhou com suas lágrimas e enxugou com os cabelos. Não me cumprimentaste com beijo; ela porém, não pára de beijar-me os pés desde que entrei. Não colocaste óleo sobre a minha cabeça; mas ela derramou perfume sobre meus pés. Por isso te digo: Os pecados dela que são muitos, lhe são perdoados, pois ela amou muito...”  (Lc 7.44-47)
            Qual o vínculo que nos une ao Mestre? Só o amor faz nossas lágrimas brotarem aos pés do Senhor. Só o amor nos faz assumir uma atitude de humilde contrição ao beijar-lhe os pés. Só o amor nos faz entregar algo valioso ao Senhor. Nada disso o fariseu fez, embora tivesse recebido Jesus em sua casa.
            Qual o vínculo que nos une aos nossos familiares? Esposo (a) e filhos?
            Estamos empenhados em consolidar os frágeis vínculos do amor? Amando, demonstrando afeto, reforçando os laços de amor, aliviando e alimentando?
            As cordas humanas do amor são muito sensíveis, precisam ser reforçadas a todo momento, porque nos esquecemos, porque nossa necessidade de afetividade é constante, porque somos ingratos, porque muitas vezes nosso amor não é correspondido, ou não correspondemos o amor na mesma intensidade que o recebemos.
             Não foi à toa que o vínculo do amor tornou-se um mandamento, maior que todos os outros:
            Amarás o Senhor teu Deus de todo o teu coração, com toda a tua alma, com todas as tuas forças e com todo o teu entendimento, e o próximo como a ti mesmo.” (Lc 10.27)
            E quantas vezes o nosso próximo está dentro de casa? Talvez tenha sido por isso que Paulo escreveu tão forte palavra de condenação para quem não cuida dos seus (I Tm 5.8). 
            Nossos relacionamentos serão mais leves, mais prazeirosos, menos estressantes, se substituirmos o medo e a obrigação pelo amor. Será que não é isto que estamos precisando? Ainda há tempo de recomeçar! 
          E acima de tudo, revesti-vos do amor, que é o vínculo da perfeição.” (Col 3.14)

As Dores do Conhecimento

     
  Gostaria de refletir sobre duas afirmações que circulam intensamente na nossa comunicação popular oral: “A ignorância é uma bênção”, e “Eu era feliz e não sabia”.
         O conhecimento é algo buscado, incentivado a ser conquistado, pago para ser adquirido, financiado pelo Estado para ser multiplicado, etc. Se é algo tão valioso, por que o fato de não tê-lo seria uma bênção, como diz a afirmação?
       A sabedoria popular estaria equivocada? O velho filósofo hebreu escritor do Eclesiastes dizia: Porque na muita sabedoria há muito enfado; e o que aumenta em conhecimento, aumenta em dor (Ec 1.18).  Eis uma faceta do conhecimento que dificilmente pensamos. O conhecimento é um fardo! Dele sobrevirão dores para o sujeito que conhece. Lembro-me então do outro dito popular: Eu era feliz e não sabia!
     É... Eu era feliz e não sabia: Quando acreditava que os discursos dos políticos eram verdadeiros. Quando não conhecia sobre as negociações escusas ocorridas nos bastidores do Congresso, do Senado, das Assembléias Legislativas e Câmaras Municipais.
    É... Eu era feliz e não sabia: Quando não tinha consciência de que a educação está a serviço do poder reprodutor da sociedade, e que todos nós envolvidos no processo somos parte dessa estrutura de dominação e reprodução.
    É.... Eu era feliz e não sabia: Quando afirmava que os discursos institucionais das empresas (diferente dos discursos dos políticos) eram de fato imparciais e  generosos.
    A ignorância era então, uma bênção.  Eu achava que os líderes mundiais assentados naquelas mesas atrás das bandeirinhas de seus países estavam reunidos na ONU verdadeiramente buscando uma solução pacífica para o mundo, e não tentando aproveitar cada situação para que seu país sobrepujasse os demais.
    Eu era feliz e não sabia... Via nos livros de história a foto de Franklin D. Roosevelt, Stalin e Churchill, reunidos em Yalta, e pensava: Grandes líderes o mundo tem! Homens sensíveis, do bem, e empenhados pela paz no mundo. Definitivamente a ignorância é uma bênção!
     Fiquei emocionado um dia, quando vi soldados americanos sendo enviados ao Iraque e pensei: Que nação altruísta! Enviando seus soldados para libertar outros povos, estando deixando de pensar em si mesmo para ajudar outros... A ignorância é uma bênção!
     Eu era feliz e não sabia quando via as cenas românticas das novelas e filmes e pensava: Como o amor é lindo! Somente carinho e romantismo! A ignorância é uma bênção!
      Antes eu olhava para os filhos arrumados e penteados dos casais conhecidos e pensava: Que crianças lindas, bem comportadas, obedientes....
        A vida de ignorância é o paraíso. Somos felizes e não sabemos! A história do Éden também ilustra essa verdade. Adão e Eva estavam no Jardim, em total inocência, até que comeram do fruto da árvore do conhecimento do bem e do mal. Abriram os olhos e conheceram-se a si próprios e ao mundo que lhes rodeava. Começaram então seus sofrimentos, com a expulsão do Jardim. Viver de olhos fechados, viver ignorante, é uma bênção. Conhecer, compreender transforma-nos em seres sofredores.
     Um dia comemos da árvore do conhecimento... e então, ocorre o inevitável! Passamos a sofrer!
     Um dia descobrimos que aquele político acima de qualquer suspeita está envolvido em desvio de alguns milhões destinados a obras públicas.
     Somos desafiados à reflexão ética acerca da Educação e nos vemos como agentes parciais do processo educativo, muitas vezes carregados de preconceitos e paradigmas equivocados.
    De repente, olhamos para nossa empresa e não a reconhecemos. Seus discursos não condizem com sua conduta. Seus lemas, missão, propósitos, objetivos... tudo parece máscara que encobre a realidade de que a única preocupação corporativa é verdadeiramente o lucro!
     Alguém publica algo além da história oficial, e nos deixa cientes do absurdo jogo de poder observado entre os líderes das potências do mundo do pós-guerra e que se desdobra numa guerra fria que dura mais de meio século!
     Abrimos os olhos e descobrimos que o Grande Irmão Americano não é tão altruísta quanto parece. Vende armas para uma facção quando lhe é conveniente, lança uns contra os outros quando isto for benéfico à sua política comercial e econômica, e intervém heroicamente quando lhe convém...
      Descobri que o amor é lindo, mas tem dimensões que dificilmente são exploradas nos filmes e novelas. Só o apóstolo Paulo teve coragem de expô-las tão claramente como ninguém o havia feito: “O amor é paciente, é benigno... tudo sofre, tudo espera, tudo suporta...”
     Conversando com casais amigos percebi que não somente os meus filhos são levados, trabalhosos, rebeldes... Aquele comportamento das crianças dos outros na minha frente era só para “inglês ver”... Crianças dão trabalho de todo jeito!
     Agora eu sei... Fui expulso do paraíso. Eu era feliz e não sabia. Sinto peso. Incômodos. Dores. Sofrimento. É perfeita a afirmativa do Eclesiastes: “Porque na muita sabedoria há muito enfado; e o que aumenta em conhecimento, aumenta em dor.” O que fazer então? Depois que se sabe não mais se volta aos caminhos da ignorância.
     Preciso pensar que há beleza no sofrimento! Os estóicos talvez pensassem assim.  Não preciso pensar que eu era feliz e não sabia. Sou feliz com o fardo da responsabilidade que o saber me traz. Preciso aprender a conviver com as dores da decepção, com o inconveniente dos paradoxos... Então, por que não propor que conhecer é uma bênção?

Comunidade cristã: pra que?

Fundamentos biblicos, antropológico, teológicos e psicológicos da vida comunitária

Antropológicos e Psicológicos

Cada rosto é um espelho e um desejo de ser, de ter,
Não é preciso uma verdade nova, uma aventura...
Pra encontrar nas luzes que se acendem um brilho eterno,
E dar as mãos e dar de si além do próprio gesto,
E descobrir feliz que o amor esconde outro universo...
(Vida, Fábio Júnior)

            Em primeiro lugar é importante que tenhamos em mente que antropólogos, sociólogos, filósofos e outros homens da ciência, desde o século XIX, prenunciavam o fim do mundo religioso. De fato, o desenvolvimento humano e o crescimento  das condições de segurança existencial conduzem à diminuição dos valores religiosos na sociedade pós-moderna, mas isso não implica o declínio da religião ou o seu fim. A autoridade religiosa, na verdade, não ocupa mais o mesmo lugar que antes... (vide Pippa Norris e Ronald Inglehart, Sacred and secular. Religion and politics worldwide, Cambridge Press, 2004)
            A secularização que vivenciamos hoje, secularização como utilizada por Peter Berger (Realidade Social da Religião), isto é, como o fim da cultura do domínio do religioso, com o concomitante crescimento da consciência do eu, possibilitou a transformação da organização das pessoas antes em comunidade para sociedade.
Os vínculos de longa duração observados na comunidade, quais sejam de parentesco e de obrigação, foram substituídos por vínculos contratuais. Tal realidade porém, gera um senso de despersonalização, coisificação. De fato, a desintegração da vida tradicional deu origem a uma espécie de anonimato, a vida é mais tolerante, em contrapartida, surge a angústia do “não ser”.
Em meio à sociedade pós-industrial, coisificante, despersonalizadora, as pessoas anseiam por relações de longa duração, menos descartáveis, menos instáveis. Busca-se comunidades. As igrejas continuam caracterizadas como grupos comunitários, onde a despersonalização dá lugar à personalização, eu tenho nome, e pertenço a uma comunidade que me conhece, re-conhece. Tem suas exigências sobre mim, sobre meu comportamento, mas isso decorre do vínculo que temos.
Na empresa somos um recurso, que precisa estar bem treinado, bem atualizado, saudável e motivado... caso isso não ocorra somos sumariamente descartados...
No casamento (o contrato de casamento), precisamos ser provedores, grandes amantes, bons pais, e manter uma bonita aparência... caso isso não ocorra... o divórcio acena constantemente...
Igreja como comunidade pode ser o lugar onde o meu desejo, antigo desejo de ser, não somente de ter, pode se materializar, quando eu der as mãos e dando  de si além do próprio gesto, descubro  feliz que o amor esconde outro universo...

Bíblicos e teológicos

Talvez quem sabe por esta cidade passe um anjo,
Que por encanto abra suas asas sobre os homens,
E dê vontade de se dá aos outros em medida,
A qualidade de poder viver, vida... vida... vida...
(Vida, Fábio Júnior)

Inicialmente Jesus não fala para uma comunidade. Ele ensina um punhado de pessoas que passam a ser seus seguidores. O seguem porque foram chamados por ele (como é o caso específico dos discípulos, os doze), o seguem porque sentem-se a ele vinculados após serem curados, ou libertos (Lc 8.2). Mas já vislumbra neles o embrião de uma comunidade, isto fica claro no Sermão do Monte (Mt 5), no qual fica claro que seus seguidores são a luz do mundo e o sal da terra (5.13), e que uma nova ética e prática lhes é confiada.
Nos instantes finais com os discípulos, antes de sua paixão e morte, Jesus delineia melhor como ele espera que seja a vida em comunidade de seus seguidores, e estabelece que deve ser uma comunidade que obedeça seus ditos (Jo 15.14) e viva verdadeiramente o amor mútuo (Jo 15.17).
O desafio de viver em comunidade é o desafio de viver o amor de Cristo, é o compromisso de perdão (Mt 18.21-22) e reconciliação (Mt 5.23,24), é o desafio de servir, considerando os outros superior a si mesmos (Mt 20.20-28)... Jesus ainda institui a Santa Ceia, que substitui a celebração hebraica da Páscoa, e esta não é celebrada na solidão, e sim em conjunto, no seio da comunidade, onde anunciamos a morte do Senhor até que Ele venha (I Co 11.26)
Quando a comunidade dos primeiros cristãos se torna realidade, primeiro em Jerusalém, depois em Samaria e Antioquia, a vivência dos desafios já anunciados por Jesus é observada no dia a dia da Igreja: Comiam juntos, louvavam a Deus e pregavam a mensagem (At 2.42-47), oravam juntos (At 4.24-31), cuidavam uns dos outros (At 6.1).
As cartas paulinas são direcionadas a comunidades, de Roma, de Corinto, de Tessalônica, de Filipos, de Éfeso, de Colossos, e cada comunidade apresenta suas necessidades e angústias próprias. Especialmente a 1ª Epístola aos Coríntios é um exemplo de que a vida em comunidade não é fácil: divisões internas, isto é, grupos ou panelinhas, uns são de Paulo, outros de Apolo, outros de Pedro, imoralidade, casos na justiça comum, enfim... problemas enfrentados por qualquer comunidade. Paulo apresenta a mesma solução apontada por Jesus, o Amor (I Co 13).
Ainda há um detalhe importante a ser mencionado. A Igreja, a comunidade é o corpo de Cristo, e cada um tem o seu papel no corpo (Rm 12.4-8), seus dons e talentos são usados complementarmente para formar a unidade do corpo. Essa temática é recorrente nas cartas paulinas, veja I Co 12 e Ef 4.
O escritor da carta aos Hebreus nos fala de uma forma muito bonita da importância da vida em comunidade:
Pensemos em como nos estimular uns aos outros ao amor e às boas obras, não abandonemos a prática de nos reunir, como é costume de alguns, mas pelo contrário, animemo-nos unos aos outros, quanto mais vedes que o Dia se aproxima...” Heb 10.24-25.
Quero finalizar com alguns parágrafos do livro “O que Cristo quer de nós”, do teólogo católico Bernard Haring, Edições Paulinas (1970):
“Os sacramentos anunciam o Evangelho e, ao mesmo tempo, impõem um dever moral que, por sua vez, é uma graça. Todas as vezes que celebramos a eucaristia anunciamos a morte do Senhor como o grande acontecimento redentor que novamente nos envolve, salva-nos e nos impõe exigências. A boa nova que o Senhor nos repete sempre através da fé da comunidade: ‘Eu morri por vós, vivo para vós e em vós’, inclui sempre, também, a exigência de ‘amar-nos uns aos outros, como ele nos amou’.  (p. 71)
Cristo proclama o mandamento novo, sentado à mesa, à volta da qual reuniu os apóstolos e sobre a qual instituiu a Eucaristia. Eles estão visivelmente reunidos á volta do Mestre e, mediante o amor que os liga, tornaram-se verdadeiramente uma família. Jesus ensina-os com um gesto tangível, que é fruto de amor humilde e servil. Tudo isto se repete, embora de modo diferente, na celebração dos sacramentos. ‘As funções litúrgicas são celebrações da Igreja, que é sacramento de unidade.’  (p.73)
A liturgia e a oração individual e comunitária tem por objetivo levar-nos a esta forma de adoração de Deus em espírito e em verdade (Jo 4.23-24). Mesmo quando oramos simplesmente, com o coração, no silêncio do nosso quarto, dizemos sempre: ‘Pai nosso’; temos diante dos nossos olhos os irmãos e incluímo-los, conscientemente na nossa súplica. Os sacramentos, e especialmente a celebração eucarística, tornam-nos ainda mais conscientes de tudo isso: quando os celebramos, estamos na presença de Deus, como família sua, unidos a Cristo. O seu amor redentor, com o qual glorificou verdadeiramente o Pai, convida-nos continuamente através da Bíblia, da liturgia e da pregação, a ‘ter uns para com os outros o mesmo sentimento, segundo o espírito de Cristo Jesus, para que, num só coração e com uma só voz, glorifiquemos a Deus, o Pai (Rm 15.5-6)...”  (p. 79)

domingo, 2 de janeiro de 2011

Arqueologia na Itália

         Tenho um carinho todo especial pela Itália. Estive lá várias vezes. Tudo lá me atrai: O sotaque italiano, os Museus, as Galerias, as ruínas do Foro Romano, a beleza do Renascimento, as obras de Michelangelo, os canais de Veneza, o Duomo... de Florença, de Milão...
       Imagine uma cidade romana da época de Cristo emergir do lodo do Rio Tibre e nós podermos caminhar em suas ruas, apreciar seus mosaicos... Ostia Antiga nos possibilita esta façanha!
       A apenas 20 km de Roma, Ostia era o porto por onde a cidade era abastecida. Armazéns, ruas largas, depósitos, e os antecessores de nossos prédios de apartamentos. Construções de 2 andares com moradias funcionais com espaço comum. Ao longo do tempo, o curso do rio mudou, o porto foi abandonado e a cidade submergiu ao lodo...
           Sabemos tanto sobre os romanos porque, além dos documentos que chegaram até nós, temos os museus vivos como Ostia Antiga e Herculano e Pompéia.
           Enquanto Ostia ressurgiu do lodo, Pompéia ressurgiu das cinzas que a soterraram totalmente no primeiro século da Era Cristã. O vulcão Vesúvio em sua mais violenta erupção destruiu totalmente as cidades que estavam à sua sombra.
            Mais bem conservada que Ostia, andar pelas ruas de Pompéia é voltar no tempo...



            Aprendemos como se vestiam os romanos, como arrumavam suas casas, quais cômodos usavam, suas crenças, seus hábitos sexuais, como compravam, como vendiam, como se enterravam...
           Sem estar tão bem conservado quanto Ostia ou Pompéia, não podemos desprezar as ruínas do Foro Romano, em pleno centro da capital italiana, com suas colunas colossais que testemunham a glória do Império, bem como com seus arcos, que eternizaram os feitos dos imperadores... Sétimo Severo, Tito, Constantino...
        Ali está também o Coliseu, o grande anfiteatro romano... impressionante mesmo para quem está acostumado a ver arranha-céus, ou a viajar em grandes aeronaves.
             Quando chegou pela primeira vez à Roma, o historiador inglês Edward Gibbon disse: "Quaisquer idéias que os livros nos possam ter dado da grandeza desse povo, seus relatos do mais florescente estado de Roma ficam infinitamente aquém do espetáculo de suas ruínas. Estou convencido de que nunca existiu antes uma nação assim, e espero, pela felicidade da humanidade, que nunca volte a existir de novo". Sentado entre as ruínas do Capitólio lhe veio a idéia de relatar o declínio e a queda da cidade... nascia ali a sua obra magna "Declínio e Queda do Império Romano".

Sobre avós e pontes: tempo...

        Hoje a minha memória teimou em me recordar a minha avó (materna) Maria. Ela morreu em janeiro. Lembrei dela de uma forma dolorosamente próxima. Era uma mulher pequena, miúda, mas de uma vontade de viver, trabalhar, ajudar, inversamente proporcional ao seu tamanho. Morreu depois de 6 meses de sofrimento: aneurisma na aorta.
        Percebi então que não tenho mais avó. Vovó Noemia (minha avó paterna) morreu em 1992, há portanto 18 anos. Vovô José, seu marido, se fora 10 anos antes, ele foi o primeiro parente que eu acompanhei a doença, a morte e o enterro. Eu tinha então 10 anos. Dos meus avós só resta o Vô Justo. Está muito doente sendo cuidado por minha tia Ruth. Em meio a minha melancolia extrema, indaguei-me: Por que existem avós? Qual o papel que eles ocupam em nossas vidas?
         Eles existem para nos ligar ao passado. Para indicar-nos que existiu um tempo chamado ontem. Para nos falar de uma época que não volta. Para nos lembrar que temos um presente de presente para ser vivido, e para nos indicar que as coisas mudam. Talvez eles sejam a própria voz do Eclesiastes que brada: Vaidade de vaidade! Tudo é vaidade! Que grande ilusão! Tudo é ilusão! Há tempo para todas as coisas debaixo do céu... Tempo de nascer, tempo de morrer!
          Concluí que os avós existem para que possamos ter consciência do tempo, de nossa rápida passagem por essa Terra... e, eles estão aqui como embaixadores de um tempo que não mais volta! 
        Sem que nada digam eles nos falam do ontem. Através de suas rugas percebemos que já foram jovens. Através de suas doenças percebemos que já foram saudáveis. Por trás do sorriso entendemos que já foram belos. O tempo...
       Mas existem avós que falam do ontem. Nos ajudam a delinear o passado, a entender quem eles próprios foram. E assim, eles se tornam para nós uma ponte, uma ponte velha, mas uma ponte que une o passado ao presente.
      Vovó Noemia foi uma dessas pontes. Não uma ponte moderna, com design futurista... Não. Uma ponte que em si mesmo conta histórias. Como a Ponte Vecchio, em Florença. Ponte Velha mesmo, em bom português, que existe desde 1345, e já viu muita água rolar sob seus arcos. Que surpreendentemente abriga em si lojas de jóias. Quem já pensou nisso? Vender jóias numa ponte? Quem já se viu em cima de ponte se adquirir jóias?
      Vovó Noemia foi minha Ponte Vecchio. Aprendi a gostar de História com ela. Ela me contava muitas histórias. Do pequeno povoado de “Anel”, que ela dizia “Ané”, em algum lugar do interior de Alagoas, onde o “coroné” era o homem-forte dono das terras. Contava-me de suas paixões juvenis, de como ela gostava de ler... mas casou cedo e teve que criar os filhos, e lavar roupa “de ganho”, para ajudar nas despesas de casa.
         Falava de suas vicissitudes e da vinda para Pernambuco. Das suas atividades como membro do “Apostolado do Sagrado Coração de Jesus” na paróquia do Alto do Pascoal. Contava das histórias da bíblia, principalmente dos livros apócrifos, que não tinham em nossa bíblia protestante, de Judite, de Holofernes... Vovó era uma mulher de muita fé.
          Falava dos comunistas que queriam se infiltrar e carregá-los para “as trevas do comunismo" (tempos duros da ditadura!). Contava de sua amizade com os padres italianos que trabalhavam na paróquia, do Padre João Muscat, que voltara para Savona, sua cidade, mas ainda se correspondia com ela. Contava que um dia acolhera em sua casa D. Helder Câmara quando este visitava a comunidade. 
          E eu ficava assentado ouvindo a vovó contando e conversando. E a vovó era a ponte que me unia ao passado. Um tempo que existia em suas lembranças e memórias, mas um novelo mágico que de alguma forma chegava até mim, e trazia sentido ao meu mundo presente. E como a florentina Ponte Vecchio, eu adquiria jóias nas histórias da vovó...
         Nós chamávamos a avó Maria de “Mãe”. Nenhum de nós, netos, fomos orientados a chamá-la de vovó. Para todo mundo, filhos e netos ela era “Mãe”. Mãe era uma mulher revolucionária para o seu tempo. Ela nunca gostou de ficar em casa fazendo comida ou cuidando dos filhos. Ela gostava de comércio, de vendas. Ela vendia passarinha assada na hora e amendoim quentinho, numa banquinha de esquina.
          Ela nunca se aquietava, sempre achava uma maneira de ganhar um dinheirinho. Enquanto teve o mínimo de saúde, fazia picolé de saquinho e vendia em sua casa. A vizinhança toda era sua cliente.
          “Mãe” era uma avó de poucas palavras. Não tinha muitas histórias para contar. Não conhecia outros textos, fora os bíblicos. Mas eu achava fascinante sua capacidade de fazer amizade. Tinha amigas de velhas datas. Maria Vieira era uma de suas amigas, e as duas se divertiam falando de suas próprias dificuldades. Ela também gostava muito de cantar. Cantava com sua voz esganiçada, cantava hinos com um olhar de quem mira o Transcendente. Mãe também era uma mulher de fé...
       Minhas avós me levavam a um tempo no qual os homens tinham fé. Uma fé pura, sem interesses mercadológicos, sem perspectivas imediatistas de bênçãos programadas. Elas também me faziam passear por seus caminhos de dificuldades, de aperto, de pobreza, não para sentir pena, mas para ter certeza que a vida é cheia de desafios, e poderemos transpô-los se o quisermos, seja lavando roupa “de ganho”, seja vendendo passarinha, amendoim ou picolé de saquinho.
       Os avós gostam de netos que gostem de ouvir, ou pelo menos de enxergá-los. Hoje os netos não tem mais paciência para ouvir os avós. Então, as novas gerações vão se tornando seres sem passado. Em meio a minha melancolia, fiquei feliz. Porque meus avós cumpriram com maestria o seu papel de pontes que me conectaram ao passado, às suas experiências, a uma parte do tempo que eu não tive acesso.
           De repente me dei conta, que após cumprirem o seu papel aquelas velhas pontes desaparecem, e surgem outras... Não é que eu já começo a me ver como uma ponte? Imagino que daqui alguns anos serei avô. Espero ser uma grande e firme ponte para meus netos...
            
                                                                                           Ponte Vecchio, Florença, Itália                          
Fortaleza, 02 de outubro de 2010.