Eu cresci ouvindo um hino memorável cantado por Feliciano Amaral, que ficou impregnado na minha mente e no meu coração. Os mais antigos talvez lembrem: Eterno Fanal. Posso dizer de cor ainda os versos dessa canção tão profunda e que continua a me tocar:
Noite azul céu sereno... Um barco pequeno...
Vou deslizando no mar, e a brancura da lua
Nas águas flutua, Numa beleza sem par
De longe parece, ouvir-se uma prece
Do vento das ondas, da espuma que em véu
Emoldura o caminho que passa o barquinho,
Seguindo as estrelas, que o guiam pro céu...
O cenário é perfeito! Um barco navegando num mar calmo, com o reflexo da lua a flutuar na água... E o barco do cristão vai seguindo as estrelas com destino ao céu. Belíssimo, lindo, inspirador... mas momentâneo, uma realidade passageira, uma calma temporária. Por que passageira? Porque a vida não é um conto de fadas com tudo no lugar, e sem tempestades ou sobressaltos, ou imprevistos, ou inesperados.
Infelizmente muitos cristãos entendem que é tarefa de Deus lhes garantir um cenário sem sobressaltos. Uma vida tranqüila de calma e felicidade. Isentos de perigos, de dor, de sofrimento, de sustos, de decepções... Mas será assim? Não é isto que a canção nos diz? A canção nos diria apenas isso, se não houvesse outra estrofe, outros versos, temíveis, talvez até indesejáveis, mas tão reais, que a inspiração do poeta beirou o realismo cotidiano:
Mas em dado momento... transforma-se o vento...
Cessa da lua o clarão... e o mar tão bravio...
É um desafio, ao barco sem direção,
Com voz de lamento, do meu pensamento,
Orei ao meu Mestre com fé sem igual,
E voltou a bonança, vitória se alcança
Olhando pra Cristo, o Eterno Fanal !
O que é isso? Um cenário que de repente é alterado de forma substancial, um mundo organizado e equilibrado que repentinamente se põe de pernas pro ar. Como Deus permite isso? Que a morte atinja aos nossos... O câncer nos devore silenciosamente... A traição aconteça debaixo de nossos olhos... A injustiça inesperadamente nos atinja no trabalho... Amigos chegados se revelem em traidores... Os filhos de repente enveredem em caminhos duvidosos... Como? Por que?
Um dia Jeremias está às voltas com Deus tentando entender as misérias que lhe rodeiam, embora seja ele um homem fiel (Jer 12.3), quando o Todo-Poderoso lhe faz uma pergunta extremamente pertinente:
“Se te fatigas correndo com homens que vão a pé, como poderás competir com os cavalos? Se tão-somente numa terra de paz estás confiado, como farás na enchente do Jordão?” (Jer 12.5)
A indagação divina faz-nos pensar: A mudança do cenário, seja de que forma for, é uma realidade, é uma constatação. Não nos foi prometido que teríamos um idílico cenário em nossa viagem pelo Mar da Vida. As tempestades são um fato! Não podemos nos cansar com as pequenas coisas da rotina (correndo com os homens que vão a pé), pois a qualquer momento podemos ser desafiados a competir com aqueles que andam a cavalo! Isto é, problemas e desafios muito maiores que os cotidianos já conhecidos.
Deus não passa a mão na cabeça de Jeremias, e lhe diz, tudo vai ficar bem, não vai acontecer nada. Não, senhores. Deus responde que o que ele já sofreu não é nada comparado com o que ainda vem. Ele corre com homens a pé... o que dizer quando correrá com os que andam a cavalo?
Se tão somente numa terra de paz estás confiado, como farás na enchente do Jordão? A planície de aluvião do Rio Jordão, coberta de vegetação densa, era covil para animais selvagens, inclusive o leão asiático, e na primavera ficava parcialmente inundada (Jos 3.15).
Alguns caminhos são evitados por nós, em face de um proceder sábio, outros são inevitáveis. Em algum momento enfrentaremos os perigos da Planície do Jordão, talvez quando ela estiver inundada, talvez diante dos perigos de animais selvagens que provocam os nossos mais profundos medos...
Se estivermos prontos apenas para competir com os que andam a pé, ou entendermos que apenas estaremos em terra de paz, como enfrentaremos as dificuldades?
O sábio deixou-nos um provérbio lapidar: “Se te mostrares frouxo no dia da angústia, a tua força será pequena”, ou noutra tradução, “Se te desanimares em tempos de dificuldades, serás fraco...” (Pv 24.10)
Diante do desafio da tormenta inesperada, o poeta não nega que está em perigo, afinal o Mar tão bravio é um desafio ao Barco sem direção. A beleza do clarão da Lua não mais se vê, apenas a tempestade. Mas a resposta não é o desespero, não é fazer de conta que nada está acontecendo. A Fé é a resposta do crente para a dificuldade: Orei ao meu Mestre com fé sem igual...
Outro poeta também foi inspirado em cena como esta para escrever o hino 328 do Cantor Cristão: Sossegai!
Ó Mestre! O mar se revolta: As ondas nos dão pavor.
O Céu se reveste de trevas.
Mestre, na minha tristeza estou quase a sucumbir:
A dor que perturba minha alma, Oh! Peço-te, vem banir!
Pereço sem ti, oh! Meu Mestre, vem logo, vem me acudir.
Dia da angústia, da dificuldade, é parte da vida de todos nós. Não seja fraco, não seja frouxo. Tenha fé.
Nas orientações finais de Jesus aos seus discípulos antes de sua morte ele disse: “No mundo tereis tribulações, mas tende coragem. Eu venci o mundo.” (Jo 16.33)
Jesus trilhou o caminho da corrida com os cavalos, e da enchente do Jordão. Ele sofreu o escárnio do povo, a traição de Judas, a negação de Pedro, a negligência dos amigos mais chegados na hora em que ele mais precisava (Nem uma hora pudestes velar comigo? Mt 26.40), a injustiça dos interesses político-religiosos, o desamparo do Pai (Mt 27.46)... Eu venci, disse Ele. Tende coragem! Afinal, vitória se alcança, olhando para Cristo o Eterno Fanal!
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