quarta-feira, 16 de março de 2011

Ushuaia: Fin del Mundo, sim, “cafundó-de-judas” jamais

    Os recentes desastres naturais de proporções apocalípticas têm feito muita gente refletir sobre o fim do mundo. Fim do mundo, advérbio de tempo. Tempo em que o fim chegará... o Apocalipse. Não quero pensar no fim do mundo. Prefiro pensar no presente e o que eu posso hoje fazer para transformar este mundo. Deixo com Deus o tempo em que o mundo se findará, embora não tenha dúvida de que estamos no tempo do fim... Mas o fim do mundo também pode ser pensado como advérbio de lugar. O lugar onde o mundo finda.
   Quando minha avó pensava num lugar longe... ela falava em Manaus, ou Belém do Pará.  No imaginário da minha avó Manaus ou Belém eram o fim do mundo. Para quem estava em Recife, de fato estas cidades não ficavam tão próximas!  Minha avó era uma legítima representante do mundo pré-científico, quando ainda não se sabia sequer que a Terra era uma gigantesca esfera girando em torno do Sol. Os antigos tinham a tendência de imaginar que o fim do mundo estava além da linha do horizonte, onde os abismos tragavam os mais ousados.
   Em torno de 5 séculos depois de Copérnico e Fernão de Magalhães, sabemos exatamente onde fica o fim do mundo: O último lugar civilizado onde serem humanos nascem, dão-se em casamento, morrem e são sepultados.
   Minha avó ficaria absolutamente escandalizada se eu lhe dissesse que eu fui ao fim do mundo e não era na Amazônia! Era muito mais ao Sul. Para quem já está no hemisfério sul, como nós,  estamos a meio caminho. Primeiro um vôo para o Sul do país, depois outro vôo para a capital argentina, e finalmente um novo vôo para o extremo sul da Argentina. Ufa! Longe? Claro. O Fim do mundo: Ushuaia. Mais abaixo apenas a base naval chilena de Porto Williams, e os pinguins do Continente Antártico.
    Final da Ruta 3, 3.000 km ao Sul de Buenos Aires cruzando a Patagônia erma e fria: Ushuaia, na língua indígena significa “baía interna olhando para o Oeste”. Uma baía no canal de Beagle, ao Sul do Estreito de Magalhães. O canal tem este nome em homenagem a embarcação  que adentrou esses fins de mundo na primeira metade do século XIX, o navio de Sua Majestade Beagle. Em missão de reconhecimento, o navio levava o jovem naturalista Charles Darwin. Sua viagem ao redor do mundo propiciou-lhe reflexões que o levaram a formular a Teoria da Seleção Natural.
     No século XIX, os britânicos vitorianos em seu ardor pela mensagem do evangelho, enviaram missionários para distantes regiões da Índia, Birmânia, China (como não lembrar de Hudson Taylor?), ao coração da África (não dá para esquecer David Livingstone)... mas faltava alguma coisa... Nas palavras de Jesus seus seguidores seriam suas testemunhas até os confins da Terra... até o fim do mundo.  A Junta de Missões da Igreja da Inglaterra enviou missionários aos confins da Terra: Ushuaia teve seus começos numa casa de missão, pré-fabricada, levantada em 1869 pelo reverendo W.H.Stirling, ao lado das habitações dos índios yaghan.   
    De uma simples aldeia evoluiu para base militar, depois Colônia Penal de Segurança Máxima... agora não encontramos mais índios, nem degredados... apenas viajantes de lugares longínquos querendo conhecer o fim do mundo... antes que venha o fim do mundo!

     Thomas Bridges, outro missionário inglês, no final do século XIX, solicitou ao governo argentino, e foi atendido, uma concessão de terras onde o mesmo pudesse trabalhar e estabelecer-se. Ainda hoje sua família habita aquelas terras, é a “Estância Haberton”, a 50 km de Ushuaia.  Lá é o ponto de partida para uma excursão à Isla Yacapsela, onde vemos os bichinhos mais elegantes da fauna terrestre: os pinguins.  

       O dicionário aponta o vocábulo “cafundó” como um sinônimo para fim de mundo.  É difícil pensar em Ushuaia como um “cafundó”... Fin del Mundo sim, cafundó-de-judas, jamais!
     No vídeo abaixo, um pouco desse interessantíssimo "fim de mundo": Eu estive lá...

terça-feira, 1 de março de 2011

O preço da coerência

     Coerência, do latim cohaerentia, derivado de cohaerens (manter junto) e cohaerere (ser consistente, coeso). Talvez para elucidar ainda mais o sentido da palavra, o uso do antônimo, do contrário, seja válido. Pensemos em fragmentário, despedaçado... incoerente!
      Fala-se muito em ética, em conduta, em atitude, em ação... fala-se. Mas vive-se tanto quanto se fala? Se houver muita falação e pouca realidade, ou numa linguagem filosoficamente mais adequada, muita teoria e pouca práxis... então faltará coerência (cohaerentia)!
       Talvez nunca na história da humanidade se tenha vivido num ambiente de incoerência tal como vivemos hoje. Nunca se falou tanto na valorização do homem e na preservação da natureza, como nos dias de hoje. E nunca se devastou tanto a natureza e se desvalorizou tanto o ser humano como nos dias de hoje. Falta coerência...
      Nunca se falou tanto em amor como na atualidade... e nunca se viveu tão pouco o amor como hoje. Incoerência...
      Pensemos por um momento numa coisa:
  1. Por que somos incoerentes?
      O que nos leva à inconsistência? À falta de coesão entre discurso e prática? Proponho a seguinte explicação: Somos incoerentes porque estamos visando o nosso  egoísmo, e estamos buscando a aceitação e aplauso do próximo.
   a) Somos incoerentes porque estamos visando o nosso egoísmo
   Ora, num mundo dominado pela busca a qualquer preço do sucesso não faz sentido ser coerente. Uma das maiores histórias acerca da incoerência foi contada por Natã, a uns 3 mil anos atrás:
    Numa cidade havia dois homens, um rico e outro pobre. O rico tinha rebanhos e manadas em grande número; mas o pobre não tinha coisa alguma, senão uma pequena cordeira que comprara e criara; ela crescera come ele e com seus filhos; comia da sua porção, bebia de seu copo e dormia em seus braços; e ele a considerava como filha. Certa vez, um viajante chegou à casa do rico; mas ele não quis pegar uma ovelha sua ou um boi seu para dar de comer ao viajante que o visitava, assim tomou a cordeira do pobre e a preparou para o seu hóspede...” (II Sm 12.1-4).   
     É coerente um homem rico usufruir de sua riqueza e oferecer dos seus bens para o seu hóspede. Não é consistente tirar o único bem do outro para seu próprio prazer. Mas Davi o fez!
     Quando viu Bate-Seba só pensou na satisfação do seu desejo, no seu egoísmo... Tornou-se o mais incoerente dos homens!
b) Somos incoerentes porque estamos buscando a aceitação e aplauso do próximo
      Escrevendo aos gálatas, Paulo relata-nos uma história curiosa:
      E quando reconheceram a graça que me havia sido dada, Tiago, Cefas (Pedro) e João, considerados colunas, estenderam a mão direita da comunhão a mim e a Barnabé, para que fôssemos aos gentios, e eles à circuncisão... Quando, porém, Cefas chegou a Antioquia, eu o enfrentei abertamente, pois merecia ser repreendido. Porque antes de chegarem alguns da parte de Tiago, ele estava comendo com os gentios; mas quando eles chegaram, Cefas foi se retirando e se separando deles, por temer os que eram da circuncisão...” (Gál 2.9-12)
         Ser aceito pelo grupo, pela comunidade, pela sociedade é um anseio comum do ser humano, pois ninguém quer viver sozinho, à margem. Seria, porém, preciso abrir mão da coerência para que essa aceitação se realize?
         Parece-nos que Pedro tinha medo de que sua coerência se transformasse num entrave para sua aceitação no grupo. Embora ele tivesse anteriormente apoiado o trabalho missionário entre os gentios, e até tivesse sentado à mesa com eles, quando chegaram seus irmãos judeus de Jerusalém, ele se retirou e se separou deles... temendo a reação destes.
          É necessário que Paulo o repreenda publicamente, condenando sua incoerência!
        Parece-nos que a incoerência é menos custosa, é mais simples, é um recurso à mão sem maiores sacrifícios. E, o mais importante, a maior parte das pessoas não mais se preocupando se somos ou não coerentes... A incoerência não é mais repudiada, como Paulo fez! É tolerada, aceita, e até bem-vinda!
  1. O preço da coerência
a) Renúncia
       O comandante sírio Naamã, viaja de Damasco a Israel em busca de cura para a sua lepra. Enviado ao profeta Eliseu, este o envia ao Rio Jordão para que se lave sete vezes e seja purificado de sua enfermidade. Milagrosamente curado, o general sírio oferece presentes ao profeta que responde: “Tão certo como vive o Senhor, a quem cultuo, não o receberei...” (II Rs 5.16) Embora o comandante insista, o profeta não abre mão de sua posição.
         Eis o preço da coerência: Renúncia! Que sentido havia em receber presentes se a cura veio do Senhor? Não recebo presentes, pois se algum louvor houver pertence ao Senhor dos Exércitos. Mas a tentação da incoerência é grande: prata, roupas especiais...
            ...E Geazi, servo do profeta,  não resiste à tentação da incoerência: Inventa uma mentira e recebe parte dos presentes do general sírio (II Rs 5.20-27). Bobagem, alguns poucos presentes, não vai fazer diferença para o rico comandante, enquanto para mim... Isso chama-se racionalização. Estamos tentando racionalizar nossa incoerência. Buscar explicações lógicas para elas.
            A incoerência de Geazi foi motivada pelo seu desejo pelo ouro, pela riqueza, seu desejo egoísta... Houve um preço alto: A lepra de Naamã lhe atingiu. Se parece ser alto o preço da coerência, a renúncia; Maior é o preço posteriormente cobrado pela incoerência, que o digam Davi, em seus terríveis dramas familiares, e o pobre Geazi.
            Eliseu pagou o preço da coerência. Abriu mão de riquezas temporais e manteve sua posição. Estamos prontos a fazê-lo, também?
             b) Impopularidade
            Jesus nunca foi antipático ou chato, mas nunca teve grande preocupação em ser popular, em não chatear as pessoas. Jesus nunca temeu a desaprovação das pessoas como Pedro o fez.
             Jesus teve uma postura de plena coerência. Senão vejamos alguns exemplos:
             Estando Jesus à mesa na casa de Mateus, chegaram muitos publicanos e pecadores e se sentaram à mesa juntamente com Jesus e seus discípulos. Vendo isso, os fariseus perguntavam aos discípulos: Por que o vosso Mestre come com publicanos e pecadores? Jesus, porém, ouvindo isso, respondeu: Os sãos não precisam de médico, mas sim os doentes...” (Mt 9.10-12)
 
     Diferente de Pedro, que preocupado com sua popularidade abraçou uma postura incoerente, Jesus não se preocupou com o que os fariseus iam pensar com o fato de estar comendo com publicanos  e pecadores. Afinal, como seria possível dizer “Vinde a mim todos os que estais cansados e oprimidos...” (Mt 11.28), se quando eles chegassem não pudessem se aproximar por causa das línguas farisaicas? Não seria incoerente? Jesus porém era coerente!
         Numa mensagem de difícil entendimento muitos dizem: “Essa palavra é dura; quem a pode suportar?” Jesus conhecendo seus corações indaga: “Isso vos escandaliza?” E mais adiante faz outra pergunta ainda mais provocadora: “Quereis vós também retirar-vos?” (Jo 6.60-70).
          O discurso de Cristo não muda porque há reprovação. Ele não altera a mensagem porque está preocupado com a evasão de ouvintes. Ele não faz uma rápida adaptação da mensagem tendo em vista a baixa aceitação. Ele não passa a prometer o que não pode, ou a mentir deslavadamente para manter seu público cativo. Ele não simula milagres, ou evoca o sobrenatural para que as pessoas sejam atraídas pelo mistério. Ele continua pregando normalmente... Coerência...
        Servimos e amamos a um Cristo coerente. Podemos ser modelos de incoerência, de inconsistência... mas não aprendemos isto do Mestre da Galiléia. Estamos assimilando muito rapidamente os paradigmas do nosso tempo. Entretanto, somos desafiados a viver uma vida coerente, e na nossa coerência, Jesus será glorificado:
        “...Eu neles, e tu em mim, para que eles sejam levado à plena unidade, a fim de que o mundo reconheça que me enviaste e os amaste, assim como me amaste.” (Jo 17.23)
      Estamos prontos a pagar o preço?