terça-feira, 1 de março de 2011

O preço da coerência

     Coerência, do latim cohaerentia, derivado de cohaerens (manter junto) e cohaerere (ser consistente, coeso). Talvez para elucidar ainda mais o sentido da palavra, o uso do antônimo, do contrário, seja válido. Pensemos em fragmentário, despedaçado... incoerente!
      Fala-se muito em ética, em conduta, em atitude, em ação... fala-se. Mas vive-se tanto quanto se fala? Se houver muita falação e pouca realidade, ou numa linguagem filosoficamente mais adequada, muita teoria e pouca práxis... então faltará coerência (cohaerentia)!
       Talvez nunca na história da humanidade se tenha vivido num ambiente de incoerência tal como vivemos hoje. Nunca se falou tanto na valorização do homem e na preservação da natureza, como nos dias de hoje. E nunca se devastou tanto a natureza e se desvalorizou tanto o ser humano como nos dias de hoje. Falta coerência...
      Nunca se falou tanto em amor como na atualidade... e nunca se viveu tão pouco o amor como hoje. Incoerência...
      Pensemos por um momento numa coisa:
  1. Por que somos incoerentes?
      O que nos leva à inconsistência? À falta de coesão entre discurso e prática? Proponho a seguinte explicação: Somos incoerentes porque estamos visando o nosso  egoísmo, e estamos buscando a aceitação e aplauso do próximo.
   a) Somos incoerentes porque estamos visando o nosso egoísmo
   Ora, num mundo dominado pela busca a qualquer preço do sucesso não faz sentido ser coerente. Uma das maiores histórias acerca da incoerência foi contada por Natã, a uns 3 mil anos atrás:
    Numa cidade havia dois homens, um rico e outro pobre. O rico tinha rebanhos e manadas em grande número; mas o pobre não tinha coisa alguma, senão uma pequena cordeira que comprara e criara; ela crescera come ele e com seus filhos; comia da sua porção, bebia de seu copo e dormia em seus braços; e ele a considerava como filha. Certa vez, um viajante chegou à casa do rico; mas ele não quis pegar uma ovelha sua ou um boi seu para dar de comer ao viajante que o visitava, assim tomou a cordeira do pobre e a preparou para o seu hóspede...” (II Sm 12.1-4).   
     É coerente um homem rico usufruir de sua riqueza e oferecer dos seus bens para o seu hóspede. Não é consistente tirar o único bem do outro para seu próprio prazer. Mas Davi o fez!
     Quando viu Bate-Seba só pensou na satisfação do seu desejo, no seu egoísmo... Tornou-se o mais incoerente dos homens!
b) Somos incoerentes porque estamos buscando a aceitação e aplauso do próximo
      Escrevendo aos gálatas, Paulo relata-nos uma história curiosa:
      E quando reconheceram a graça que me havia sido dada, Tiago, Cefas (Pedro) e João, considerados colunas, estenderam a mão direita da comunhão a mim e a Barnabé, para que fôssemos aos gentios, e eles à circuncisão... Quando, porém, Cefas chegou a Antioquia, eu o enfrentei abertamente, pois merecia ser repreendido. Porque antes de chegarem alguns da parte de Tiago, ele estava comendo com os gentios; mas quando eles chegaram, Cefas foi se retirando e se separando deles, por temer os que eram da circuncisão...” (Gál 2.9-12)
         Ser aceito pelo grupo, pela comunidade, pela sociedade é um anseio comum do ser humano, pois ninguém quer viver sozinho, à margem. Seria, porém, preciso abrir mão da coerência para que essa aceitação se realize?
         Parece-nos que Pedro tinha medo de que sua coerência se transformasse num entrave para sua aceitação no grupo. Embora ele tivesse anteriormente apoiado o trabalho missionário entre os gentios, e até tivesse sentado à mesa com eles, quando chegaram seus irmãos judeus de Jerusalém, ele se retirou e se separou deles... temendo a reação destes.
          É necessário que Paulo o repreenda publicamente, condenando sua incoerência!
        Parece-nos que a incoerência é menos custosa, é mais simples, é um recurso à mão sem maiores sacrifícios. E, o mais importante, a maior parte das pessoas não mais se preocupando se somos ou não coerentes... A incoerência não é mais repudiada, como Paulo fez! É tolerada, aceita, e até bem-vinda!
  1. O preço da coerência
a) Renúncia
       O comandante sírio Naamã, viaja de Damasco a Israel em busca de cura para a sua lepra. Enviado ao profeta Eliseu, este o envia ao Rio Jordão para que se lave sete vezes e seja purificado de sua enfermidade. Milagrosamente curado, o general sírio oferece presentes ao profeta que responde: “Tão certo como vive o Senhor, a quem cultuo, não o receberei...” (II Rs 5.16) Embora o comandante insista, o profeta não abre mão de sua posição.
         Eis o preço da coerência: Renúncia! Que sentido havia em receber presentes se a cura veio do Senhor? Não recebo presentes, pois se algum louvor houver pertence ao Senhor dos Exércitos. Mas a tentação da incoerência é grande: prata, roupas especiais...
            ...E Geazi, servo do profeta,  não resiste à tentação da incoerência: Inventa uma mentira e recebe parte dos presentes do general sírio (II Rs 5.20-27). Bobagem, alguns poucos presentes, não vai fazer diferença para o rico comandante, enquanto para mim... Isso chama-se racionalização. Estamos tentando racionalizar nossa incoerência. Buscar explicações lógicas para elas.
            A incoerência de Geazi foi motivada pelo seu desejo pelo ouro, pela riqueza, seu desejo egoísta... Houve um preço alto: A lepra de Naamã lhe atingiu. Se parece ser alto o preço da coerência, a renúncia; Maior é o preço posteriormente cobrado pela incoerência, que o digam Davi, em seus terríveis dramas familiares, e o pobre Geazi.
            Eliseu pagou o preço da coerência. Abriu mão de riquezas temporais e manteve sua posição. Estamos prontos a fazê-lo, também?
             b) Impopularidade
            Jesus nunca foi antipático ou chato, mas nunca teve grande preocupação em ser popular, em não chatear as pessoas. Jesus nunca temeu a desaprovação das pessoas como Pedro o fez.
             Jesus teve uma postura de plena coerência. Senão vejamos alguns exemplos:
             Estando Jesus à mesa na casa de Mateus, chegaram muitos publicanos e pecadores e se sentaram à mesa juntamente com Jesus e seus discípulos. Vendo isso, os fariseus perguntavam aos discípulos: Por que o vosso Mestre come com publicanos e pecadores? Jesus, porém, ouvindo isso, respondeu: Os sãos não precisam de médico, mas sim os doentes...” (Mt 9.10-12)
 
     Diferente de Pedro, que preocupado com sua popularidade abraçou uma postura incoerente, Jesus não se preocupou com o que os fariseus iam pensar com o fato de estar comendo com publicanos  e pecadores. Afinal, como seria possível dizer “Vinde a mim todos os que estais cansados e oprimidos...” (Mt 11.28), se quando eles chegassem não pudessem se aproximar por causa das línguas farisaicas? Não seria incoerente? Jesus porém era coerente!
         Numa mensagem de difícil entendimento muitos dizem: “Essa palavra é dura; quem a pode suportar?” Jesus conhecendo seus corações indaga: “Isso vos escandaliza?” E mais adiante faz outra pergunta ainda mais provocadora: “Quereis vós também retirar-vos?” (Jo 6.60-70).
          O discurso de Cristo não muda porque há reprovação. Ele não altera a mensagem porque está preocupado com a evasão de ouvintes. Ele não faz uma rápida adaptação da mensagem tendo em vista a baixa aceitação. Ele não passa a prometer o que não pode, ou a mentir deslavadamente para manter seu público cativo. Ele não simula milagres, ou evoca o sobrenatural para que as pessoas sejam atraídas pelo mistério. Ele continua pregando normalmente... Coerência...
        Servimos e amamos a um Cristo coerente. Podemos ser modelos de incoerência, de inconsistência... mas não aprendemos isto do Mestre da Galiléia. Estamos assimilando muito rapidamente os paradigmas do nosso tempo. Entretanto, somos desafiados a viver uma vida coerente, e na nossa coerência, Jesus será glorificado:
        “...Eu neles, e tu em mim, para que eles sejam levado à plena unidade, a fim de que o mundo reconheça que me enviaste e os amaste, assim como me amaste.” (Jo 17.23)
      Estamos prontos a pagar o preço?

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