segunda-feira, 26 de fevereiro de 2018

Ouvistes o que foi dito... Eu, porém, vos digo



  

   Parte do sermão do monte é destinada a uma seção com esta estrutura: Ouvistes o que foi dito... eu, porém, vos digo (Mt 5 21-48). Esse trecho do sermão de Jesus é precedido de um esclarecimento acerca do cumprimento da lei de Moisés, ou da possibilidade de Jesus estar ali com a missão de abolir a lei: “Não cuideis que vim destruir a lei ou os profetas, não vim abolir, mas cumprir...” (Mt 5.17)
    A lei foi um estágio importante de nosso aprendizado, e não pode ser simplesmente ignorada, ou abolida. Jesus veio ampliar o seu entendimento e aplicação.
   Esse trecho do sermão é finalizado com uma exortação: Sede vós teleioi (perfeitos, adultos, maduros) como é perfeito o vosso Pai, que está nos céus (Mt 5.48). O sentido natural de teleios é adulto, aquele que atingiu o pleno estágio de desenvolvimento, em contraponto aos bebês, garotos.
    O caminho para o teleios passa necessariamente pelo “ouvistes que foi dito”. Foi o próprio Deus que idealizou o “estágio seguinte”, tendo em vista o descumprimento da aliança por parte de Israel:
    Eis que dias vêm, diz o Senhor, em que farei um concerto novo com a casa de Israel e com a casa de Judá... Mas este é o concerto que farei com a casa de Israel depois daqueles dias, diz o Senhor: porei a minha lei no seu interior e a escreverei no seu coração; e eu serei o seu Deus, e eles serão o meu povo (Jer 31.31-33).
    Enquanto a lei estava escrita em tábuas de pedra, num novo estágio a lei estaria escrita no coração de cada homem.
   Ao recapitular algumas ordenanças da lei, Jesus vai ampliando necessariamente a sua aplicação:
   Ouvistes o que foi dito aos antigos: Não cometerás adultério. Eu, porém, vos digo que qualquer que atentar numa mulher para a cobiçar já em seu coração cometeu adultério com ela (Mt 5.27-28).
    Alguns dos maiores problemas dos leitores da bíblia hoje tem a ver com ignorar este princípio estabelecido por Jesus:  Ouvistes que foi dito... eu, porém, vos digo. No Antigo Testamento temos a palavra de Deus, que não foi abolida, mas precisa ser entendida à luz deste princípio: Ouvistes que foi dito... eu, porém, vos digo.  Se ignorarmos esse princípio teremos posicionamentos errados,  atitudes equivocadas, entendimentos falhos, e ainda estaremos afirmando sermos bíblicos!
    Vejamos alguns exemplos:
    Ouvistes que foi dito... que Elias quando ameaçado pelos soldados do rei Acazias pediu que descesse fogo do céu e consumisse o capitão que veio prendê-lo e os seus 50 soldados, tendo isto acontecido por duas vezes (II Rs 1.9-12).
  Ouvistes que foi dito... o sacerdote Joiada foi o mentor espiritual e conselheiro do jovem Rei Joás, que inclusive, sob sua orientação  promoveu uma reforma no templo de Deus. Após a morte de Joiada, Joás deu ouvidos a conselhos ímpios e desviou-se do Senhor. O Espírito de Deus revestiu a Zacarias, filho de Joiada e profetizou trazendo a palavra de juízo de Deus. O rei Joás mandou apedrejar Zacarias no templo:
     Assim o rei Joás não se lembrou da beneficência que Joiada, pai de Zacarias, lhe fizera; porém matou-lhe o filho, o qual, morrendo disse: O Senhor o verá e o requererá (II Cr 24.22).

    Ouvistes que foi dito... Salmos imprecatórios! Entre os salmos de louvor, de gratidão, estão alguns salmos classificados como salmos imprecatórios. Estes salmos são clamores por vingança. São pedidos que a justiça de Deus se manifeste sobre os ímpios. Algo parecido com o clamor final do profeta Zacarias ao ser apedrejado.
   Consome-os na tua indignação, consome-os de modo que não existam mais, para que saibam que Deus reina em Jacó até aos confins da terra (Sl 59.13).
    Ouvistes que foi dito: Olho por olho e dente por dente (Mt 5.38).
     Pelos exemplos que estamos trazendo, percebe-se que o homem do Antigo Testamento tinha uma noção muito elementar da misericórdia e da graça de Deus. Seu estágio de aprendizagem ainda é muito rudimentar. Mas, importante, necessário, válido!
    Antes de chegarmos ao “Eu porém vos digo”, de Cristo,  precisamos citar dois livros do Antigo Testamento que nos apontam um avanço significativo dessa aprendizagem: Oséias e Jonas.
    Em Oséias veremos algo totalmente novo. Um profeta é mandado para casar com uma moça de reputação moral comprometida, após o casamento e os filhos que se sucedem, ela volta aos costumes de prostituição, e adultério, então ele retorna, a acolhe novamente, recebe-a novamente como sua esposa, a perdoa e ama. O que havia sido dito, olho por olho, dente por dente, previa a morte por apedrejamento daquela mulher adúltera. Não o perdão, e a reconciliação.

   Mas tudo o que acontece em Oséias não é iniciativa do profeta, é ordenança de Deus. Então nós teremos de fato algo novo, mas não porque no coração desse homem tenha perdão ou misericórdia, mas porque ele estava sendo obediente a voz de Deus.
    Em Jonas fica mais claro ainda a resistência do homem em operacionalizar a graça e misericórdia de Deus. Um povo idólatra, só merecia a destruição. Deus em seu amor e graça envia Jonas para despertar o povo de seu erro. Jonas não quer  trazer a mensagem porque quer ver o cumprimento do “olho por olho, dente por dente”. Fica então frustrado quando o povo se arrepende e Deus não destrói a cidade.
    Eu porém vos digo...
    Quando Jesus enviou alguns discípulos para preparar pousada numa aldeia de samaritanos, estes não foram recebidos pois o seu aspecto era de quem ia a Jerusalém. João e Tiago então disseram: Senhor, queres que digamos que desça fogo do céu e os consuma, como Elias também fez? Jesus os repreende e diz: Vós não sabeis de que espírito sois. Porque o Filho do Homem não veio para destruir as almas dos homens, mas para salvá-las. E foram para outra aldeia (Lc 9.51-56).
   Os discípulos estavam vivendo um outro momento, mas continuavam apegados ao “ouvistes o que foi dito”. Pedir fogo do céu para consumir alguém parece ser tanto mais espiritual, quanto bíblico, afinal Elias o havia feito! Mas não é este o espírito que Jesus foi enviado. Não de destruição, mas de restauração.
    Discutindo sobre o perdão, Pedro pergunta a Jesus:
    Senhor, até quantas vezes pecará meu irmão contra mim, e eu lhe perdoarei? Até sete? Jesus lhe disse: Não te digo até sete, mas até setenta vezes sete (Mt 18.21-22).
    Perdão parece ser algo muito novo para Pedro, acostumado aos salmos imprecatórios! Então ele propõe que possa perdoar sete vezes o seu irmão. Sendo isso um avanço impensável! Jesus então diz, não sete, mas setenta vezes sete. Este número é uma inversão da vingança encontrada em Gn 4.24... Eu, porém,  vos digo!
     Pedro diz que dará a sua vida por Jesus, Jesus então lhe diz que “não cantará o galo enquanto Pedro não tiver lhe negado três vezes” (Jo 13.37-38).
     Pedro nega a Jesus três vezes, como fora predito. Lucas registra que:
     E, virando-se o Senhor, olhou para Pedro, e Pedro lembrou-se da palavra do Senhor, como lhe tinha dito: Antes que o galo cante hoje, me negarás três vezes. E, saindo Pedro para fora, chorou amargamente.  (Lc 22.61-62)

      Como poderia ser ele perdoado depois de tão grande pecado contra seu Senhor?
     Ouvistes o que foi dito... Eu, porém, vos digo.
     Zacarias ao ser apedrejado clamou pela vingança divina: O Senhor o verá e o requererá. Jesus crucificado entre dois ladrões, com uma coroa de espinhos em sua cabeça, vendo suas vestes sendo repartidas, sofrendo o escárnio da multidão, bradou:
     Pai, perdoa-lhes, porque não sabem o que fazem. (Lc 21.34)
     Após sua ressurreição Jesus encontra Pedro e os demais discípulos no Mar da Galileia, conversa com Pedro e indaga se ele o ama. A pergunta é feita por três vezes, a mesma quantidade de vezes que Pedro negara Jesus. Ao final Jesus diz a Pedro: Apascenta as minhas ovelhas (Jo 21.15-17).

    Jesus não apenas enuncia uma ordenança, ele o faz. Ele não apenas diz a Pedro que devemos perdoar tantas vezes sejam necessárias. Ele perdoa Pedro, e restabelece a amizade de ambos. É o Deus-Homem que entre nós está, vivendo nossas decepções, frustrações, sendo negado, traído e humilhado, que tem toda a propriedade para dizer: Pai perdoa-lhes.
     Jesus não apenas é o exemplo. Ele, através do seu Espírito Santo, nos capacita a agirmos como ele. Pois o seu concerto está nos nossos corações. Não agimos apenas porque fomos ordenados a agir, como Jonas ou Oséias, agimos porque nosso coração é habilitado para assim fazê-lo.
    Ouvistes o que foi dito... Quando Zacarias estava morrendo apedrejado bradou: Deus o verá e o requererá.
    Estêvão foi injustamente acusado de blasfêmia, após ter pregado um dos mais belos sermões da história. Ao ser apedrejado, pondo-se de joelhos, clamou com grande voz: Senhor, não lhes imputes este pecado (At 7.60).

    Ninguém ordenou a Estêvão que assim o dissesse, mas o seu coração cheio de amor pelo Senhor Jesus, pôde expressar livremente essas palavras.
    Que seja assim conosco, em pleno século XXI... que no nosso coração fale mais alto “eu, porém, vos digo”.

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