Arroubo significa enlevo,
êxtase. Santo Agostinho explica o
arroubo como o momento em que “a mente é tomada por alguma inspiração ou
revelação” (Comentário ao Salmo
116.11). Esta é uma palavra muito
utilizada na literatura para se falar em atitudes impensadas de amor, tornando-se
sinônimo de precipitação.
Em seu romance “Budapeste”, Chico Buarque
escreve um trecho que ilustra perfeitamente a ideia do arroubo: “Tive medo de,
num arroubo, puxá-la contra o peito e falar as coisas que eu só sabia falar na
minha língua”.
Misturando a literatura de Chico, com as
reflexões teológicas do bispo de Hipona, acordei pensando em “arroubos de fé,
humildade e amor”. Seriam coisas ditas de forma precipitada, ou atitudes que
nem sempre correspondem às reais crenças do indivíduo.
Lembrando passagens dos evangelhos percebo que a pessoa de Jesus Cristo
provocava nas pessoas arroubos de admiração, de devoção, de paixão. E acho, que
continua provocando...
Na narrativa de Mt 8.19-20, um escriba fica tão entusiasmado com Jesus,
que num arroubo de devoção declara: “Mestre, ande quer que fores, eu te
seguirei”. É provável que ele estivesse a oferecer-se para acompanhar Jesus em
todas as suas viagens. A resposta de Jesus visou mostrara a ele que o Filho do
homem não tem lar estabelecido. É preciso levar em conta o custo de ser
discípulo!
Talvez Simão Pedro tenha sido o homem mais cheio de arroubos do texto
bíblico neotestamentário. Vejamos o episódio no qual Jesus caminha sobre as
águas, Mt 14.22-31:
“Logo em seguida obrigou os seus discípulos a entrar no barco, e passar
adiante dele para o outro lado, enquanto ele despedia as multidões. Tendo-as despedido, subiu ao monte para orar
à parte. Ao anoitecer, estava ali sozinho. Entrementes, o barco já estava a
muitos estádios da terra, açoitado pelas ondas; porque o vento era
contrário. À quarta vigília da noite,
foi Jesus ter com eles, andando sobre o mar.
Os discípulos, porém, ao vê-lo andando sobre o mar, assustaram-se e
disseram: É um fantasma. E gritaram de medo.
Jesus, porém, imediatamente lhes falou, dizendo: Tende ânimo; sou eu;
não temais. Respondeu-lhe Pedro: Senhor! se
és tu, manda-me ir ter contigo sobre as águas. Disse-lhe ele: Vem. Pedro, descendo do barco,
e andando sobre as águas, foi ao encontro de Jesus. Mas, sentindo o vento, teve
medo; e, começando a submergir, clamou: Senhor, salva-me. Imediatamente
estendeu Jesus a mão, segurou-o, e disse-lhe: Homem de pouca fé, por que
duvidaste?”
Parece que a verdade sobre a nossa fé não está nos nossos arroubos que
nos fazem tomar decisões espetaculares. Está na realidade de como enfrentamos o
medo, e a forte tempestade. O fato é
que, apesar do seu arroubo de fé, Pedro era um homem de pouca fé!
A convivência com Jesus não somente provocava em Pedro arroubos de fé,
mas também de humildade. Vejamos a narrativa joanina, Jo 13.3-9:
“Sabendo Jesus que o Pai lhe outorgara poder sobre tudo o que existe, e
que viera de Deus e estava retornando a Deus, levantou-se da mesa, tirou a capa
e colocou uma toalha em volta da cintura. Em seguida, derramou água em uma
bacia e começou a lavar os pés dos discípulos e a enxugá-los com a toalha que
estava em sua cintura. Aproximou-se de Simão Pedro, que lhe disse: “Senhor,
vais me lavar os pés?” Respondeu-lhe Jesus: “O que faço agora, não podes
compreender, todavia o compreenderás mais tarde.” Disse-lhe Pedro: “Senhor, jamais
me lavarás os pés!” Ao que Jesus lhe advertiu: “Se Eu não lavar os teus
pés, tu não terás parte comigo.” Rogou-lhe Simão Pedro: “Senhor, lava não
somente meus pés, mas também, as minhas mãos e a minha cabeça!”
Vendo o seu mestre lavando os pés dos
demais discípulos, Pedro, num arroubo de humildade, decidiu que os seus pés não
seriam lavados pelo Senhor: “Jamais me lavarás os pés”. Mas no momento
seguinte, Pedro pede que o Senhor não somente lhe lave os pés, mas as mãos e a
cabeça!
A pretensa humildade de Pedro se esvai qual
fumaça, agora ele pede que o Mestre lhe dê um banho!
O mais marcante dos arroubos de
Pedro, com certeza é um arroubo de amor. Senão vejamos o texto de Jo 13.36-38:
Disse-lhe Simão Pedro: Senhor, para onde vais? Jesus lhe respondeu: Para
onde eu vou não podes agora seguir-me, mas depois me seguirás. Disse-lhe Pedro: Por que não posso seguir-te
agora?
Por ti darei a minha vida. Respondeu-lhe Jesus: Tu darás a tua vida por
mim? Na verdade, na verdade te digo que não cantará o galo enquanto não me
tiveres negado três vezes.
Num diálogo com Jesus, num arroubo de amor e devoção Pedro declara que
pelo Mestre daria a sua vida. Esta não é uma afirmativa usual. É uma declaração
de amor intensa, dita apenas para aqueles a quem se devota um profundo amor.
Mais adiante, Jesus esclarece que “Ninguém tem maior amor do que este:
de dar a sua vida pelos seus amigos” (Jo 15.13). Portanto, Pedro estava dizendo
que ninguém amava mais a Jesus do que ele próprio, pois estava disposto a dar a
sua vida pelo Mestre.
Diante do arroubo de Pedro, Jesus parece cético: Tu darás a tua vida por
mim? Na verdade, antes que o galo cante me negarás três vezes.
Pedro negou três vezes a Cristo, como fora predito, antes do cantar do
galo.
Após sua morte, sepultamento e ressurreição, Jesus aparece aos
discípulos às margens do Mar da Galiléia. Dirige-se a Pedro indagando: Simão,
Filho de Jonas, amas-me mais do que estes? (Jo 21.15).
É como se o Mestre retomasse a conversa de
onde pararam, só que tinham diante de si a recente negação de Pedro. Negou o
Mestre ainda que, em seu arroubo de amor, dissera que por ele daria a sua vida.
“ É verdade, Pedro, que você me ama mais do que os demais? Pois foi isso que
você declarou em seu arroubo de amor: Por ti darei a minha vida”.
Jesus repete duas vezes a indagação se Pedro o ama, sem incluir “mais do
que estes”. Ao que Pedro responde positivamente. Fica claro que Pedro não amava
Jesus mais do que os demais, mas era fato que o amava.
Queremos declarar que somos os que
mais amamos o Mestre, que somos os mais humildes, que temos mais fé: Na
realidade amamos igual aos outros, somos de fato orgulhosos, e temos pouca fé!
Num arroubo de amor somos capazes de dizer coisas que nunca poderemos
cumprir. Num arroubo de humildade poderemos nos comprometer com algo que de
fato não corresponde às nossas ações. Num arroubo de fé poderemos dar passos
que nos levarão ao afogamento.
Ainda bem que Jesus tem paciência com
nossos arroubos. Estende a sua mão e nos salva em nossos arroubos de fé.
Ensina-nos pacientemente em nossos arroubos de humildade, e confronta-nos em
nossos arroubos de amor.
Fico
pensando... talvez somente eu e Pedro, tenhamos arroubos do tipo!
Arroubos de inspiração voltados ao discípulo, no aprendizado com o Mestre. Novos olhares nas Escrituras Sagradas e o evangelho pessoal de amar e ser levado a reconhecer o amor que se destina ao Evangelho Vivo. Grande abraço!
ResponderExcluir