sexta-feira, 3 de novembro de 2017

Arroubos de fé, humildade e amor

    Arroubo significa enlevo, êxtase.  Santo Agostinho explica o arroubo como o momento em que “a mente é tomada por alguma inspiração ou revelação”  (Comentário ao Salmo 116.11).  Esta é uma palavra muito utilizada na literatura para se falar em atitudes impensadas de amor, tornando-se sinônimo de precipitação.  
    Em seu romance “Budapeste”, Chico Buarque escreve um trecho que ilustra perfeitamente a ideia do arroubo: “Tive medo de, num arroubo, puxá-la contra o peito e falar as coisas que eu só sabia falar na minha língua”.
    Misturando a literatura de Chico, com as reflexões teológicas do bispo de Hipona, acordei pensando em “arroubos de fé, humildade e amor”. Seriam coisas ditas de forma precipitada, ou atitudes que nem sempre correspondem às reais crenças do indivíduo.
   Lembrando passagens dos evangelhos percebo que a pessoa de Jesus Cristo provocava nas pessoas arroubos de admiração, de devoção, de paixão. E acho, que continua provocando...
   Na narrativa de Mt 8.19-20, um escriba fica tão entusiasmado com Jesus, que num arroubo de devoção declara: “Mestre, ande quer que fores, eu te seguirei”. É provável que ele estivesse a oferecer-se para acompanhar Jesus em todas as suas viagens. A resposta de Jesus visou mostrara a ele que o Filho do homem não tem lar estabelecido. É preciso levar em conta o custo de ser discípulo!
   Talvez Simão Pedro tenha sido o homem mais cheio de arroubos do texto bíblico neotestamentário. Vejamos o episódio no qual Jesus caminha sobre as águas, Mt 14.22-31:
  “Logo em seguida obrigou os seus discípulos a entrar no barco, e passar adiante dele para o outro lado, enquanto ele despedia as multidões.   Tendo-as despedido, subiu ao monte para orar à parte. Ao anoitecer, estava ali sozinho. Entrementes, o barco já estava a muitos estádios da terra, açoitado pelas ondas; porque o vento era contrário.    À quarta vigília da noite, foi Jesus ter com eles, andando sobre o mar.  Os discípulos, porém, ao vê-lo andando sobre o mar, assustaram-se e disseram: É um fantasma. E gritaram de medo.    Jesus, porém, imediatamente lhes falou, dizendo: Tende ânimo; sou eu; não temais.   Respondeu-lhe Pedro: Senhor! se és tu, manda-me ir ter contigo sobre as águas.    Disse-lhe ele: Vem. Pedro, descendo do barco, e andando sobre as águas, foi ao encontro de Jesus. Mas, sentindo o vento, teve medo; e, começando a submergir, clamou: Senhor, salva-me. Imediatamente estendeu Jesus a mão, segurou-o, e disse-lhe: Homem de pouca fé, por que duvidaste?”

       Quando Jesus se identifica como aquele que está vindo sobre as águas, Pedro, num arroubo de fé, candidata-se a andar sobre as águas. Ao ouvir o consentimento do Mestre, Pedro desce do barco e anda sobre as águas. Mas o vento é forte, e a realidade do medo, é ainda maior do que o arroubo de fé de Simão Pedro. Ele então começa a ir para o fundo. Clama então: Senhor Salva-me. Jesus o segura pela mão e indaga: Homem de pouca fé, por que duvidaste?
   Parece que a verdade sobre a nossa fé não está nos nossos arroubos que nos fazem tomar decisões espetaculares. Está na realidade de como enfrentamos o medo, e a forte tempestade.  O fato é que, apesar do seu arroubo de fé, Pedro era um homem de pouca fé!
   A convivência com Jesus não somente provocava em Pedro arroubos de fé, mas também de humildade. Vejamos a narrativa joanina, Jo 13.3-9:
   “Sabendo Jesus que o Pai lhe outorgara poder sobre tudo o que existe, e que viera de Deus e estava retornando a Deus, levantou-se da mesa, tirou a capa e colocou uma toalha em volta da cintura. Em seguida, derramou água em uma bacia e começou a lavar os pés dos discípulos e a enxugá-los com a toalha que estava em sua cintura. Aproximou-se de Simão Pedro, que lhe disse: “Senhor, vais me lavar os pés?” Respondeu-lhe Jesus: “O que faço agora, não podes compreender, todavia o compreenderás mais tarde.” Disse-lhe Pedro: “Senhor, jamais me lavarás os pés!” Ao que Jesus lhe advertiu: “Se Eu não lavar os teus pés, tu não terás parte comigo.” Rogou-lhe Simão Pedro: “Senhor, lava não somente meus pés, mas também, as minhas mãos e a minha cabeça!”

     Vendo o seu mestre lavando os pés dos demais discípulos, Pedro, num arroubo de humildade, decidiu que os seus pés não seriam lavados pelo Senhor: “Jamais me lavarás os pés”. Mas no momento seguinte, Pedro pede que o Senhor não somente lhe lave os pés, mas as mãos e a cabeça!
    A pretensa humildade de Pedro se esvai qual fumaça, agora ele pede que o Mestre lhe dê um banho!
    O mais marcante dos arroubos de Pedro, com certeza é um arroubo de amor. Senão vejamos o texto de Jo 13.36-38:
   Disse-lhe Simão Pedro: Senhor, para onde vais? Jesus lhe respondeu: Para onde eu vou não podes agora seguir-me, mas depois me seguirás.  Disse-lhe Pedro: Por que não posso seguir-te agora? Por ti darei a minha vida. Respondeu-lhe Jesus: Tu darás a tua vida por mim? Na verdade, na verdade te digo que não cantará o galo enquanto não me tiveres negado três vezes.
   Num diálogo com Jesus, num arroubo de amor e devoção Pedro declara que pelo Mestre daria a sua vida. Esta não é uma afirmativa usual. É uma declaração de amor intensa, dita apenas para aqueles a quem se devota um profundo amor.
   Mais adiante, Jesus esclarece que “Ninguém tem maior amor do que este: de dar a sua vida pelos seus amigos” (Jo 15.13). Portanto, Pedro estava dizendo que ninguém amava mais a Jesus do que ele próprio, pois estava disposto a dar a sua vida pelo Mestre.
   Diante do arroubo de Pedro, Jesus parece cético: Tu darás a tua vida por mim? Na verdade, antes que o galo cante me negarás três vezes.

   Pedro negou três vezes a Cristo, como fora predito, antes do cantar do galo.
   Após sua morte, sepultamento e ressurreição, Jesus aparece aos discípulos às margens do Mar da Galiléia. Dirige-se a Pedro indagando: Simão, Filho de Jonas, amas-me mais do que estes? (Jo 21.15).
    É como se o Mestre retomasse a conversa de onde pararam, só que tinham diante de si a recente negação de Pedro. Negou o Mestre ainda que, em seu arroubo de amor, dissera que por ele daria a sua vida. “ É verdade, Pedro, que você me ama mais do que os demais? Pois foi isso que você declarou em seu arroubo de amor: Por ti darei a minha vida”.
   Jesus repete duas vezes a indagação se Pedro o ama, sem incluir “mais do que estes”. Ao que Pedro responde positivamente. Fica claro que Pedro não amava Jesus mais do que os demais, mas era fato que o amava.
      Queremos declarar que somos os que mais amamos o Mestre, que somos os mais humildes, que temos mais fé: Na realidade amamos igual aos outros, somos de fato orgulhosos, e temos pouca fé!
   Num arroubo de amor somos capazes de dizer coisas que nunca poderemos cumprir. Num arroubo de humildade poderemos nos comprometer com algo que de fato não corresponde às nossas ações. Num arroubo de fé poderemos dar passos que nos levarão ao afogamento.
    Ainda bem que Jesus tem paciência com nossos arroubos. Estende a sua mão e nos salva em nossos arroubos de fé. Ensina-nos pacientemente em nossos arroubos de humildade, e confronta-nos em nossos arroubos de amor.
    Fico pensando... talvez somente eu e Pedro, tenhamos arroubos do tipo! 

Um comentário:

  1. Arroubos de inspiração voltados ao discípulo, no aprendizado com o Mestre. Novos olhares nas Escrituras Sagradas e o evangelho pessoal de amar e ser levado a reconhecer o amor que se destina ao Evangelho Vivo. Grande abraço!

    ResponderExcluir