quarta-feira, 9 de março de 2016

Saudade...

  Eu estava lendo a bíblia, na epístola mais afetiva do apóstolo Paulo, onde os sentimentos estão presentes em cada linha da missiva, e me deparei com a palavra saudade, Fp 2.26, no original ἐπιποθεῖν (epipothein). Essa palavra é utilizada por Paulo, em outros momentos em Filipenses e em outras cartas como Romanos, Coríntios...
  Todos os usos bíblicos indicam que epipothein expressa um intenso desejo que tem  conexão direta com algum tipo de amor. Isso quer dizer que epipothein não é exclusiva para saudade. Percebe-se que trata-se de saudade pelo contexto, pela linha argumentativa do falante.
   Trata-se de uma constatação: Todo mundo sente saudade, mas nem todo mundo tem uma palavra mágica, exclusiva, sonora, tocante como nós, os lusófonos. Só nós temos “saudade”. Esses dias minha esposa estava viajando e postou no grupo da família: Estou com saudades. Não precisa interpretar nem fazer qualquer esforço hermenêutico, nem buscar o contexto em que foi dito: Saudade, é saudade!
   Os franceses, por exemplo, quando querem dizer que estão com saudade de alguém, precisam dizer “Você me faz falta”, Tu me manques. Manquer é o verbo em francês para fazer falta.
    Fico pensando que eu posso fazer falta a alguém, sem obrigatoriamente isso significar saudade. Saudade é mais profundo, um negócio que dói. Uma coisa que machuca, que até faz chorar...
  Como os franceses, os ingleses expressam saudade falando da falta de alguém ou de algo, “Sinto falta de você”, I’ve missed you.
    Talvez Clarice me ajude a expressar a profundidade que há na saudade:
Sentimento urgente (Clarice Lispector)
Saudade é um pouco como fome
Só passa quando se come a presença
Mas, às vezes, a saudade é tão profunda que a presença é pouco
Quer-se absorver a outra pessoa toda
Essa vontade de um ser o outro para uma unificação inteira
É um dos sentimentos mais urgentes que se tem na vida.
   Lá na Pinacoteca de São Paulo existem dois quadros que versam sobre o mesmo tema: Saudade. A palavra em si já é poética, tem cheiro de arte, de coração, de sensibilidade, de lágrima, de aperto no peito... tem cara de ausência, de querer-mas-não-poder... Quando um pintor resolve re-significá-la num quadro, temos pura poesia em forma de imagem.


    Berthe Worms, uma artista francesa que viveu no Brasil entre os séculos XIX e XX,  fez isso num quadro que comentamos num outro post: Saudades de Nápoles. Não precisa de título... a carinha do garoto diz tudo, com seu aspecto de precariedade que denuncia o exílio, o expatriamento. Lembrei de Gonçalves Dias, que expressou com palavras-lágrimas a ideia de saudade:   Minha terra tem palmeiras, onde canta o sabiá, as aves que aqui gorjeiam não gorjeiam como lá... Não permita Deus que eu morra sem que eu volte para lá...
    Suprema ironia poética, o poeta morreu afogado no retorno de seu exílio, próximo a praia de sua terra.
    Almeida Júnior   também pintou um quadro denominado “Saudade” ... conseguiu transpor através das pinceladas-lágrimas a dor desse sentimento no coração daquela jovem senhora.

   Gerson Borges, outro poeta querido contemporâeo, compôs um poema que ele chamou “Simplesmente quando chove”... poder-se-ia chamar Escolhas e Saudade:
Se apenas apenas uma escolha me restasse, eu levaria o pôr-do-sol,
ou se uma só herança me bastasse, um rouxinol
que cantasse a dor das distâncias e curasse essa saudade
a me invadir enquanto eu canto, sobretudo quando chove.

Se toda a poesia, numa palavra, eu ficaria com "jardim"
e, um tipo só de arbusto ali se lavra, o alecrim,
concentrando o cheiro do longe, acalmando essa saudade
a me invadir enquanto eu canto, sobretudo quando chove.

E chove, e chove, chove sem parar, enquanto eu canto, canto,
ao te esperar.

Se cada vez que eu penso no teu rosto, vento virasse um vendaval,
desabaria o céu com muito gosto, que temporal!
Tormenta no mar da memória, rimando com essa saudade
a me invadir enquanto eu canto, sobretudo quando chove.
   
     Convido-o a ouvir esse poema, cantado na voz de Priscila Barreto. Vale a pena.



Um comentário:

  1. Numa época onde as relações humanas são, cada vez mais, banalizadas e transformadas em efêmeros "produtos virtuais de consumo" e "ostentação social" esbarramos nesta Palavra-Poesia... que carrega, em si mesma, a inescapável e urgente necessidade de experimentar novamente na alma o que não consegue ser deletado, porque é eterno.

    ResponderExcluir