Acabo de ler o clássico Crime e Castigo, de
Dostoiévski. Um livro sem par, maravilhoso. Durante sua leitura, também dei
atenção a outros livros, nos quais tentarei relacioná-los em uma síntese de
ideias.
O enredo de Crime e Castigo se desenvolve a
partir da história de Raskólnikov, um jovem estudante que desenvolve uma teoria
na qual divide a humanidade em pessoas extraordinárias e ordinárias. A partir
daí, Raskólnikov comete um assassinato, pois de acordo com sua teoria, os
homens extraordinários estão acima da lei, ou seja, o crime que para os
ordinários é condenável, para eles não passa de uma etapa a se cumprir para se
chegar a um objetivo. Fazendo com que o personagem enxergue um ato criminoso
como algo banal, assim seus crimes não podem ser considerados crimes.
Mas qual a relação de nossa sociedade chamada
mimada por Theodore Dalrymple, em seu livro “Podres de mimados”, e a teoria de
Raskólnikov? Ora, perceba que ele, ao desenvolver a teoria que divide a
humanidade, se coloca no grupo extraordinário e passa a chamar parte dos
ordinários de piolhos, ou coisa parecida. Isso o faz pensar que cometer um
crime contra um piolho não é nada. Agora olhe para nossa “sociedade mimada”,
encharcada de teorias da mesma natureza (mas muito piores, tanto em
intelectualidade como em consequências): pessoas instigadas a se acharem o
máximo, a serem felizes o tempo todo, levadas a pensar que são verdadeiras
deidades e que tudo lhes é possível... a grosso modo, serem extraordinárias.
Dito isso, vejamos: Vivemos em um tempo de
tecnologia e ciência avançada, “comida gourmet”,
academias de musculação, whey protein,
whatsapp e, acima de tudo, vivemos em
um tempo de pessoas podres de mimadas. Hoje os profissionais de coaching, os livros de autoajuda, a
teologia da prosperidade e os discursos de vitória estão em toda parte, como
verdadeiras pragas, inundando a cabeça de seus fiéis seguidores (ou “followers”.
Eles acham essa palavra chique, me parece) com motivações simplórias e pragmáticas
que, quando levadas a um estudo sério, não passam de piadas. Mas o profissional
de coaching, os livros de autoajuda e
a teologia da prosperidade, de forma nenhuma iniciaram essa “sociedade mimada”
(o seu início tem outras raízes que não trataremos nesse texto), na verdade
eles surgem de uma oportunidade vista em tal sociedade. A ideia desse tipo de
coisa é justamente tentar motivar as pessoas a desenvolverem seus potenciais
com uma espécie de autoajuda, ou seja, “você é o cara (você é extraordinário) e
vai conseguir”!
Porém, Dostoiévski nos mostra muito bem a
natureza humana e com genialidade quebra em mil pedaços essa conversa de que
podemos ser extraordinários. Em Crime e Castigo, Raskólnikov não consegue viver
sob o peso do crime cometido. No primeiro momento, ele não se arrepende do
crime em si, mas sim de não ter conseguido levar sua teoria adiante, ou seja, o
jovem Raskólnikov percebeu que não consegue ser um homem extraordinário. Arrepende-se
disso, não do crime (leia o livro para saber o final). Aqui está a questão
principal: a maioria das pessoas de nossa “sociedade mimada” não tem a
percepção de que não são extraordinárias, mas passam uma vida toda tentando ser
algo que não são, achando que as outras pessoas são piolhos, e pior ainda, por
não serem extraordinárias, fazem de tudo para ter para conseguir ser, e
nisso cometem – tal como Raskónikov – crimes e mais crimes contra a terra,
contra as outras pessoas e contra Deus, a fim de transformarem seus objetivos
fantasiosos, egoístas e mimados, em realidade.
Uma outra pessoa que entendia dos seres
humanos um pouco mais que Dostoiévski, disse um dia aos seus discípulos que
eles eram sal e luz do mundo. Acredito que esse discurso além de negligenciado,
é mal interpretado.
O sal, no contexto da frase de Jesus, era
utilizado para conservar os alimentos e para isso era necessário esfregá-lo no
alimento. O sal não possui função por si só (você não come sal assistindo TV),
ele tem que ser “desgastado” em prol de outra coisa. Mas se o sal achar que é
extraordinário e que tudo ao redor dele é um mero piolho, nunca irá se esfregar,
se desgastar por coisa alguma. E como Jesus mesmo disse, se o sal perder sua
qualidade ou suas funções, não servirá para nada.
Então, é tempo de percebermos quem somos. Se
somos realmente sal e se cumprimos nossa função. Porque o sal, meus amigos, o
sal é comum. O sal é ordinário.
Percebi que, diante da possibilidade em separar a humanidade nestas duas castas, o conflito que se instala na alma angustiada do jovem Raskólnikov começa a partir da constatação de que ele, por si só, jamais conseguirá abandonar a sua natureza de "piolho"; apenas através desta condição assumida e temperada pelo gosto salgado da realidade, que poderemos ter um vislumbre do que poderia ser a Perfeição em Verdade.
ResponderExcluirExcelente reflexão!
Parabéns ao Thalison Evangelista!!!