Antes de qualquer coisa quero afirmar que
sou pentecostal. Filho e neto de pentecostais, portanto, pentecostal de
pentecostais. Falo em línguas, expulso demônios, oro pela cura de enfermos,
creio em profecias, enfim, acredito na atualidade dos dons espirituais.
Falo portanto, de dentro de uma igreja pentecostal
histórica, da qual sou ministro. Acho que esta apresentação breve é suficiente,
para afastar ideias equivocadas que possam chegar à cabeça do meu leitor.
Ando pensando muito nesses últimos dias
sobre um fenômeno que eu mesmo estou denominando de pentecostalismo popular. Vou até
patentear essa expressão. Por favor quem
utilizá-la doravante cite a fonte(!). Lógico não estou sendo original. Também não é um plágio. Explico:
Busco essa ideia dos teólogos e estudiosos
católicos. Eles cunharam a expressão catolicismo popular. O catolicismo popular
é resultado das expressões religiosas do povo que embora almejando
identificar-se com a fé católica institucional, no caso brasileiro, sofre de
graves carências teológicas e pastorais. Nele são evidentes ranços de
superstição, magia, ritualismo, arcaísmo; à pessoa de Jesus Cristo nem sempre
se atribui o lugar que lhe cabe, como centro da fé cristã... (A Evangelização
no Brasil, Dimensões Teológicas e Desafios Pastorais, Antônio Alves de Melo,
Pontifícia Universidade Gregoriana, Roma, 1996, pág.235-238).
Trazendo esse mesmo conceito para um universo evangélico pentecostal, posso
afirmar sem medo de errar que estamos diante de situações muito parecidas com as
que ocorrem no mundo católico. E aqui
não se trata de pentecostalismo histórico e neo-pentecostalismo. Trata-se de um
fenômeno relativamente novo, que envolve o pentecostalismo brasileiro, proponho
portanto que o chamemos de pentecostalismo
popular.
O mundo protestante e evangélico como um
todo sempre foi muito mais impermeável às expressões populares livres, do que o
mundo católico, por três motivos: Em primeiro lugar pela sua ênfase nas
Escrituras, uma herança do “Sola Scriptura” da Reforma, o que evitou muitos
desvios e disparates, pois havia a ênfase no direcionamento Escriturístico,
mesmo tratando-se de líderes leigos; em segundo lugar, por não constituir uma
massa tão grande de pessoas, cuja participação no meio se dava por conversão,
normalmente genuína, e não por adesão como ora, muitas vezes se vê; e em último
lugar, por ainda não haver o domínio do mercado evangélico por empresas com
grande voracidade pelo lucro, e com pouco ou nenhum compromisso com a herança
do “Sola Scriptura”.
Mas agora... o universo evangélico se
tornou um mercado interessante, as Escrituras estão sendo substituídas pelos
jargões pragmáticos e frases de efeito... é um tempo em que as expressões da
religiosidade popular começam a tomar conta das mentes e competir, ou às vezes
substituir, as expressões institucionais
da fé, e tendo em vista as facilidades da comunicação, espalham-se muito
rapidamente e tomam os púlpitos e as assistências das igrejas.
Trago alguns poucos exemplos, mas que nos
dão uma noção bem clara do que estamos falando.
Consultei no Google algumas expressões desse pentecostalismo popular, e
vejam o que encontrei:
·
Sapato de fogo
(Aproximadamente 534.000 resultados);
·
Divisa de Fogo
(Aproximadamente 517.000 resultados) e
·
Varão de Fogo (Aproximadamente 388.000
resultados).
Em primeiro lugar surpreende um tão grande
número de hinos, discussões, apresentações, questionamentos, defesas, argumentações sobre expressões apócrifas,
inexistentes no contexto bíblico e na doutrina cristã tradicional. Sinceramente me esforcei para lembrar se no
meu tempo de Seminário Teológico Pentecostal do Nordeste, estudando com o
venerável mestre canadense Thomas W. Fodor, velho missionário pentecostal, em
algum momento falamos dessas expressões ditas “pentecostais”. Não consigo me lembrar
de nada parecido!
Andei folheando a bíblia, até em versões
pentecostais, e não me foi oferecida alternativa para tais expressões. Só tem
uma explicação: estamos diante de um fenômeno, o pentecostalismo popular.
Olhei mais detidamente (no Google) e
percebi que um irmão canta o hino “Sapato de fogo”, e numa das estrofes ele
diz:
Eu calcei sapato de fogo,
não posso me controlar!
É que o varão do movimento
chegou pra movimentar!
Sinceramente me esforcei para encontrar pelo menos uma distante analogia
bíblica que me permitisse explicar o dito “sapato de fogo”, não consegui. Não
tenho dúvida que alguém vai orar por mim para que os meus olhos espirituais
sejam abertos, como os do moço de Eliseu (II Rs 6.17). Mas se os meus olhos
forem abertos verei cavalos e carros de fogo! Exceto se os cavalos estiverem
calçados com sapatos de fogo!!! E isso não posso inferir do texto!
Um outro campeão de registros é “Divisa de
Fogo”. Parece-me que um grupo denominado Fogo no Pé, tem os direitos autorais
dessa canção. Imagino que estejam todos vinculados, porque quem tem Fogo no Pé,
é porque calçou Sapato de Fogo!!
Deus de fogo, Deus de fogo
Que abriu o Mar Vermelho
Deus de fogo, Deus de fogo
Que não deixa ninguém
tocar
Num fio do teu cabelo
Deus de fogo, Deus de fogo
Que te chama pelo nome
Eu nunca vi, o justo
mendigar um pão
Nem sua descendência
passar fome
Divisa de fogo
Varão de guerra
Ele desceu na Terra
Ele chegou pra guerrear
Ainda estou tentando entender o nexo
semântico da expressão “Divisa de Fogo”. Cheguei à conclusão que no
pentecostalismo popular não é necessário a busca de sentido e nexo das coisas.
Desisti de entender. É a expressão em si, Divisa de Fogo, que na verdade não
quer dizer nada, mas quer apenas incendiar a imaginação de quem canta. Uma espécie de
isqueiro espiritual.
Cumpre-nos ainda comentar sobre o “Varão
de Fogo”. Uma irmã canta esse hino, que vale a pena reproduzir, pelo menos um
trecho:
Varão de fogo, varão de
guerra,
Sinta o toque desses anjos
que acabam de chegar
Olha ai quem vem chegando
e tem fogo em suas mãos
E com ele vem marchando um
exército de anjos,
Eles cantam santo, santo,
santo é o SENHOR!
Sinta o toque desses anjos
que acabam de chegar
Muitos anjos estão
marchando em meio a multidão,
Canta agora no espirito e
profetiza meu irmão,
A bandeira da vitória o
anjo traz em suas mãos.
Alguns encontram a base bíblica para um
varão de fogo em Dn 3.25,o Quarto Homem da Fornalha de Fogo Ardente. Mas a
característica desse homem, segundo Nabucudonozor é que Ele é semelhante ao
filho dos deuses. Não precisa estar de posse de um comentário bíblico para se
intuir que semelhante ao filho dos deuses não quer dizer Varão de Fogo. Seria
forçar demais o significado do texto em sua simplicidade.
Se a canção quer reproduzir alguma coisa da
Visão de Isaías, no capítulo 6, estamos de uma salada mais maluca do mundo, e
mais uma vez nem dá para caminhar nas comparações porque a minha capacidade intelectual
é muito restrita para forçar a barra nos textos sagrados.
Citar-me-ão Hebreus 12.29: “Porque o nosso Deus é um fogo consumidor”.
Trata-se de uma metáfora, Deus como inspirador de santo temor.
Vou parar por aqui. Não vejo problema que o
pentecostalismo se vincule ao símbolo do fogo pela ênfase na ação do Espírito
Santo, que desde Zacarias (cap 4) é simbolizado no azeite e no fogo. O problema
está na exacerbação da temática “fogo”. E isto sim, é uma manifestação de um
pentecostalismo popular.
Para quem lê o texto bíblico, encontraremos,
em qualquer versão utilizada algo muito próximo disso:
- E foram vistas por eles línguas repartidas como que de fogo, as quais pousaram sobre cada um deles (At 2.3);
- E a sua cabeça e cabelos eram
brancos como lã branca, como a neve, e os olhos, como chamas de fogo; e os seus pés, semelhantes a latão
reluzente, como se tivesse sido refinado
numa fornalha... (Ap 1.14-15)
Comparações, símiles, são figuras de
linguagem, não devem ser entendidas em sua literalidade. Cheguei a duas explicações plausíveis acerca
do aparecimento e crescimento do pentecostalismo popular, o primeiro é de natureza intelectual, e o
segundo de natureza econômica:
a)
Os especialistas em desenvolvimento infantil e
educação tem pesquisado exaustivamente acerca de dificuldades com a linguagem
figurada, e o pensamento de forma concreta, presente em crianças e até adultos
com determinados problemas de desenvolvimento. Eles interpretam toda a linguagem literalmente, se disser que algo é
“moleza” ele vai entender que há algum objeto mole ali, quando o que se quis dizer
foi que “aquilo será uma coisa fácil de
fazer”. Quando se diz que “está chovendo canivetes”, ele acredita que canivetes
possam cair do céu. Figuras de linguagem, metáforas, comparações não são
compreensíveis. Quando se fala em fogo, o infante espiritual concretiza seu
raciocínio nas chamas, e ainda agrega acessórios como sapatos de fogo;
b)
Infelizmente se explica muita coisa pela lógica
de mercado. Alguma coisa vende? Vai ter lucros? Não importa se vão ser “500° de
Puro Fogo Santo e Poder” (só não sei se utilizo a escala em Celsius ou em
Fahrenheit, isto não ficou claro na proposta),
se intitulamos “Varão de Fogo”, “Sapato de Fogo” ou “Divisa de Fogo”. O
que importa é que vende, e que o cantor vai ser contratado a peso de ouro, nos
eventos pentecostais pelo Brasil inteiro.
Não queria ser engraçado, nem sarcástico, reconheço que fui irônico, mas
com objetivo didático. Não estou com vontade de rir. Estou com vontade de
chorar. Chorar muito. Isso quer dizer
que precisamos erguer, não a “Divisa de Fogo”, mas a Divisa reformada do “Sola
Scriptura”.
Muito bom! Também ando incomodada com tanto fogo... estranho...que parece que consome até a inteligência! =X
ResponderExcluirÓtimo texto!
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