Em mais uma dolorosa crise de hérnia de
disco, que me obrigou a tirar licença do trabalho, e ficar deitado por muitas e
muitas horas, fiz algumas leituras, dentre as quais o livro “A
Vida na Sarjeta – O Círculo Vicioso da Miséria Moral”, do médico inglês
Theodore Dalrymple. É uma leitura instigante, provocante, da qual não se sai
ileso, me vejo obrigado a escrever algumas linhas a respeito dessa obra
corajosa e verdadeira.
Digo que é um livro corajoso porque ousa falar do que está posto, de
forma crítica e cristalina, me fez lembrar a criança do conto "A roupa
nova do rei", de Hans Christian Andersen, que grita espontaneamente: O Rei
está nu!!!
Vale a pena
relembrar:
. Um dia, um alfaiate
espertalhão deu-lhe o seguinte conselho:
- Majestade, é do meu
conhecimento que apreciais andar sempre muito bem vestido, como ninguém; e bem
o mereceis! Descobri um tecido muito belo e de tal qualidade que os tolos não
são capazes de o ver. Com um manto assim Vossa Majestade poderá distinguir as
pessoas inteligentes das pessoas tolas, parvas e estúpidas que não servirão
para a vossa corte.
- Oh! Mas é uma descoberta
espantosa! - respondeu o rei. - Traga-me já esse tecido e faça-me a roupa;
quero ver as qualidades das pessoas que tenho ao meu serviço.
O alfaiate aldrabão tirou as medidas do rei
e, daí a umas semanas, apresentou-se, dizendo:
- Aqui está o manto de Vossa Majestade.
O rei não via nada, mas como não queria
passar por parvo, respondeu:
- Oh! Como é belo!
Então o alfaiate fez de conta que estava
vestindo o manto no rei, com todos os gestos necessários e exclamações
elogiosas:
- Vossa Majestade está tão elegante! Todos vos
invejarão!
A notícia correu toda a cidade: o rei tinha
um manto que só os inteligentes eram capazes de ver. Um dia, o rei decidiu sair
para se mostrar ao povo, desfilando pela cidade, com sua comitiva real
acompanhando.
Toda a gente fingia admirar a vestimenta,
porque ninguém queria passar por estúpido, até que, a certa altura, uma
criança, em toda a sua inocência, gritou:
- Olha, olha! O rei está nu!”
O psiquiatra inglês aposentado, que na
verdade se chama Anthony Daniels, mas escreve sob o pseudônimo de Theodore
Dalrymple, já exerceu a medicina em
situações extremas em áreas de risco na África, América do Sul, e em seu país,
a Grã Bretanha. Seus escritos são o resultado de sua reflexão na lide diária
com pacientes a quem ele prestou atendimento e acompanhamento.
Dalrymple constata que estamos
numa sociedade que retira a responsabilidade da maior parte das ações dos indivíduos.
Tudo tem uma explicação oriunda nas ciências sociais, seja na história (de
preferência de viés marxista), na sociologia, ou na psicologia. Adolescentes
grávidas, filhos ilegítimos, mulheres que apanham de seus parceiros, o
insucesso escolar e consequentemente profissional, a criminalidade, a vida nas
ruas, a plena e ampla desestrutura familiar... tudo isto já foi explicado por
alguma tese, ou por uma “escola” que busca “amparar” o ser humano totalmente
frágil, débil e à mercê das forças sociais que agem sobre ele.
As pessoas e suas ações são, na nossa
sociedade, vítimas das elites, das desigualdades, das injustiças. Se uma adolescente engravida ainda na idade
escolar, a culpa é da sociedade que não a apoiou corretamente. Se um assaltante
lhe rouba e lhe fere, ele é uma vítima das forças históricas desse país de 300
anos de colonialismo português.
Tudo pode ser academicamente explicado. Pilhas de livros se somam às
centenas de teses inéditas que entopem as prateleiras das bibliotecas de pós
graduação das universidades, fruto do debruçar constante sobre esses temas que
nos angustiam e comovem.
A proposta de modernidade, lançada na Revolução Francesa norteia a maior
parte do raciocínio dos nossos intelectuais, cujas ideias predominam não apenas
na academia, mas na mídia em geral, e são assimiladas prontamente por uma
multidão de pessoas incapazes de esboçar o mínimo de senso crítico. A educação tradicional, a fé, o universo
familiar tradicional, os valores absolutos... tudo isto deve ser lançado na
lata de lixo da história, como uma baboseira retrógrada. Um novo mundo não
comporta mais essas velharias.
Um mundo novo, conforme pensava Rousseau,
vê o homem com sua essência de bondade, que precisa se desfazer dos padrões
tradicionais para viver em sua plena liberdade e potencialidade.
Mas o homem bom dos iluministas, guiado
pela razão, que passa a ser sua única religião, o homem que desdenha da
divindade e de suas leis, o homem cujos valores são relativos e dependem da
situação, o homem cujo desejo é o que dita seu “estar no mundo”, não interessa
quem o rodeia... Este homem moderno guiado pelas ideias de nossos intelectuais
não parece que criou um mundo ideal.
Mas o caos no qual nos encontramos, não é
culpa deste homem. O caos é culpa das forças da história, ou talvez do Estado que não cuida do povo como dizia.
O grito infantil de Dalrymple, como o menino do conto de Andersen, O Rei
Está Nu, ecoa incomodando todo mundo. Há sim, responsabilidade de cada
indivíduo. Não se deve ir buscar os responsáveis pelos erros e equívocos na
sociedade ou no passado histórico, deve-se buscar em primeiro lugar a
responsabilidade de cada indivíduo.
Um intelectual diria que estamos falando do óbvio ululante, mas este
óbvio não é mais tão óbvio assim. As explicações acadêmicas e cultas protegem
os indivíduos que argumentam que foram arrastados para determinada situação,
que A, B, ou C são os verdadeiros culpados. Os protagonistas não agem, são
agidos. São pobres marionetes passivos puxados pelos cordões inexoráveis do
destino.
Me identifiquei de uma forma muito forte com o argumento de Dalrymple,
porque a minha história valida o seu raciocínio. Eu venho de uma família muito
pobre dos morros da zona norte do Recife. Minhas duas avós eram lavadeiras.
Ocupação inexistente nos dias de hoje. Meu avô paterno limpava os esgotos da
cidade, foi o melhor que ele conseguiu como migrante pobre da área rural de
Alagoas para Recife. Meu avô materno era trabalhador na construção civil.
Meus
pais se casaram e compraram uma casinha no Córrego da Jaqueira. Na minha
infância e adolescência a ruazinha tranquila foi se tornando violenta. As
drogas e a delinquência de forma geral se instalaram brutalmente em nossa
periferia. Não havia muita expectativa em torno de nós. Garotos muito cedo
abandonavam a escola e aderiam à vagabundagem e marginalidade. Alguns foram
assassinados em plena adolescência.
Mas valores hoje ultrapassados eram
cuidadosamente cultivados em nosso lar. Em primeiro lugar tínhamos pais, ambos.
Mas isso parece muito careta não é? Uma família tradicional. Depois tínhamos
valores. A educação era um deles. Eu estudava próximo ao centro da cidade.
Tomava o ônibus de manhã cedo. O ônibus vinha lotado, muito lotado mesmo. Mas
nunca me passou pela cabeça abandonar os estudos. O trabalho era outro valor inegociável. Minha
mãe começou a trabalhar quando eu tinha 12 anos, para ajudar na renda familiar.
Nunca esperamos que alguém nos desse qualquer coisa. O que conseguimos era
sempre fruto de nosso trabalho. Nunca esperamos nada do Governo. E tínhamos a
fé. Nossas crenças eram resultado de nossas experiências de fé, que nos
impulsionavam a ir adiante confiando em Deus, e temendo a Ele. Não havia espaço
para fazermos as coisas erradas. Mas falar de fé em tempos modernos é
complicado, não é?
Dalrymple você está certo: A maior pobreza
de nossa sociedade é a pobreza moral e espiritual. Não fui um caso de insucesso
por ter nascido pobre. Fizemos escolhas
certas a partir de valores que nos foram passados por nossos pais. Frequentei a universidade, em cursos de
graduação e pós graduação. Fui aprovado em concurso. Conquistei um espaço no
mundo. Casei, tive filhos, constitui uma nova família. Meus filhos estão
seguindo nossos passos. Estou escrevendo estas linhas, porque tenho uma
habilidade mínima para concatenar ideias e pensar por mim mesmo. Nós somos
protagonistas da nossa história, responsáveis pelos erros e acertos.
Enquanto escrevo estas poucas palavras, uma
multidão de pessoas se acotovela no Rio de Janeiro para o grande evento Rock in
Rio 2015. A imprensa nacional e internacional faz ampla cobertura do evento.
Gente do país inteiro correu para o Rio para ouvir de perto sua banda favorita.
Ficamos escandalizados porque muitos jovens
da atualidade são verdadeiros bárbaros, sem qualquer resquício de educação ou
civilidade. Falamos tanto em tolerância, mas experimentamos os mais diversos
tipos de intolerância por nossas diferenças, sejam elas de gênero, de raça ou
de fé. Queremos uma sociedade mais justa, e mais sensível.
Mas quem vai ao Rock in Rio 2015, vai
ouvir a banda nacional “Ultraje a Rigor”, ultrajando a educação tradicional e
os bons modos. Vai se deliciar com o
visual demônio louco da banda americana Motley Crue... Fico imaginando o que
esse povo vai transmitir para seus ouvintes... Mas como um mundo moderno
decreta o fim da fé, eis a proposta da banda “Faith no More”. Para estremecer
as estruturas de alguém que esboce algum cristianismo, a expressão cristã “Cordeiro
de Deus” dá nome à banda americana “Lamb of God”, em uma de suas canções “Walk
with me in hell”, alguém é convidado a “andar com o outro no inferno”.
Eu e Dalrymple nos perguntamos: Alguém
acha que essas ideias são somente ideias? Nunca se transformarão em ação na
mente de alguém menos equilibrado? O Rei está Nu, mas o Rock in Rio é o grande
evento do ano... deixará marcas indeléveis em quem foi, ou em quem está
acompanhando pela televisão. Semana que vem teremos os primeiros resultados: de
gravidez indesejada a suicídio. É muita pobreza moral...
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