A história de Raabe é muito conhecida entre os estudantes ou curiosos
que leem a Bíblia, tanto aqueles que creem na Bíblia como Escrituras Sagradas,
quanto aqueles que a estudam como Literatura Antiga. O capítulo 2 do livro de
Josué relata uma história inusitada:
Dois
homens são enviados por Josué para espiarem a cidade de Jericó. Foram e entraram na casa de uma mulher
prostituta (zanah, em hebraico), cujo
nome era Raabe, e dormiram ali. Embora não haja sugestão no texto que os espias
israelitas tenham usufruído dos favores
sexuais da anfitriã, fica claro que o local deveria ser movimentado, por isso
os espias o escolheram para passar a noite, pensando não serem percebidos na
cidade.
Mas alguém deu notícia ao Rei, de que
estrangeiros israelitas estiveram na cidade e pernoitavam na casa de Raabe. Enviou
então o Rei a Raabe em busca dos espias hebreus. Ela então os escondeu no telhado, e disse aos
homens do Rei que homens estrangeiros,
que ela de fato não sabia de onde eram, haviam estado em sua casa, mas haviam
se retirado antes que as portas da cidade se fechassem.
Indo embora os emissários reais, Raabe
subiu ao telhado onde havia escondido os espias israelitas e fez uma declaração
de fé tão profunda, que garantiu a uma prostituta cananéia um lugar entre os
heróis da fé da crença judaico-cristã. Ainda hoje, cristãos lembram-se de
Raabe, ao lerem o seu exemplo no livro de Hebreus (11.31):
Pela fé, Raabe, a meretriz (he pornê, em grego) não pereceu com os
incrédulos, acolhendo em paz os espias.
Vale a pena analisar novamente a
argumentação de Raabe, que na verdade, é uma grande profissão de fé de uma
gentia, que não acompanhara os atos de Yahweh no Egito ou no deserto, que não
conhecia os meandros da lei e do culto israelita, cujo conhecimento do Deus de
Israel era tão somente das notícias que se tinha acerca dos seus feitos:
“Bem
sei que o Senhor vos deu esta terra e que o pavor de vós caiu sobre nós, e que
todos os moradores da terra estão desfalecidos diante de vós.
Porque temos ouvido que o
Senhor secou as águas do Mar Vermelho diante de vós, quando saíeis do Egito, e
o que fizestes aos dois reis dos amorreus, a Siom e a Ogue, que estavam além do
Jordão, os quais destruístes.
O que ouvindo, desfaleceu o
nosso coração, e em ninguém mais há ânimo algum, por causa da vossa presença;
porque Yahweh vosso Deus é Deus em cima
nos céus e em baixo na terra.” (Jos 2.9-11)
Estas mesmas palavras são utilizadas por Moisés, no final de um discurso
no qual ele lembrou que a Israel Yahweh foi revelado, fez ouvir a sua voz desde
os céus, e através da reflexão eles chegariam à conclusão que Yahweh é Deus em
cima no céu e embaixo na terra (Dt 4. 35-39).
A fé é um elemento absolutamente claro e
presente no discurso de Raabe. Ela crê, num Deus invisível, e que não houve
nenhuma revelação especial dele a ela, ou a seu povo. Apenas ela ouviu dos seus
feitos e creu. Que Yahweh, o Deus de Israel é Deus em cima nos céus e em baixo
na terra. Que era fato que a cidade de Jericó seria capturada pelos filhos de
Israel, pois Yahweh estava com eles. A demonstração de fé de Raabe foi tão
marcante que o escritor da epístola aos Hebreus fez questão de relembrar sua
atitude, que tão claramente ilustra o conceito de fé: A fé é o firme fundamento das coisas que se
esperam e a prova das coisas que se não veem (Heb 11.1).
A história
prossegue e seu desenrolar deixa-nos claro que a mulher de fé também é uma
mulher de negócios. Acostumada a negociar favores sexuais, e transacionar diariamente
no mercado do sexo, Raabe busca fechar um negócio com os espias israelitas. Já
tinha um trunfo em sua mãos, que foi ter salvado suas vidas das mãos do Rei de
Jericó. E o negócio em questão não era
sexo, nem dinheiro. Era a vida. A vida dela e de sua família estava em jogo!
E Raabe, a
meretriz, a mulher de negócios, apresenta sua proposta:
“Agora, pois, jurai-me, vos
peço, pelo Senhor, que, como usei de hesed/misericórdia convosco, vós também
usareis de hesed/misericórdia para com a
casa de meu pai, e dai-me um sinal seguro, de que conservareis com a vida a meu
pai e a minha mãe, como também a meus irmãos e a minhas irmãs, com tudo o que
têm e de que livrareis as nossas vidas da morte”. ( Jos 2.12,13)
Algumas traduções não utilizam
misericórdia, e sim beneficência para hesed,
nesse texto. Talvez beneficência seja mais adequado mesmo, porque estamos
falando de um ato de bondade, mas que tem em mente um retorno, uma paga. Raabe é uma mulher de fé, mas não entendia muito de graça!
Talvez acostumada a receber
antecipadamente por seus serviços, para fechar aquele negócio ela precisava de
um sinal seguro, de verdade (emet). Usando o mesmo linguajar de Raabe, os espias
fecham o acordo, informando que usariam com Raabe de hesed/misericórdia e fidelidade (emet).
A operosidade de Raabe chama a atenção de Tiago
que registra em sua epístola, Raabe como autêntico exemplo de alguém que agrega
às obras, à fé: “Vedes, então que o homem
é justificado pelas obras, e não somente pela fé. E de igual modo Raabe, a
meretriz, não foi também justificada pelas obras, quando recolheu os emissários
e os despediu por outro caminho?” (Tg 2.24-25)
Curiosamente ela tanto consta na lista de
pessoas de fé, como é exemplo de praticante de obras e ação. Fica claro que suas
ações decorrem de sua fé. Não poderíamos esperar de uma cananeia cuja
compreensão teológica restringia-se à religião politeísta e “sensual” dos
baalins, um entendimento mais amplo do que ela demonstrou de hesed, a palavra por ela usada para
explicar o que ela mesmo fez, e o que
ela esperava dos espias.
Na concepção de Raabe, a salvação de suas
vidas era uma questão de troca. Eu ajo com hesed,
e como retorno, você age com hesed comigo,
ainda que o que esteja em questão sejam vidas. Essa é uma concepção tradicional
de religiosidade.
Mas os espias dizem uma coisa que vai além
de um negócio entre pessoas humanas. Informam que para que sua contraparte no
acordo seja cumprida, eles dependem de uma ação divina: Dando-nos o Senhor esta terra (Jos 2.14).
Os homens de Israel tinham uma noção
teológica mais aprofundada, que eles estariam agindo, buscando fazer sua parte,
mas que havia uma dependência maior da permissão e do favor de Yahweh.
Parece-nos que este entendimento faltava à meretriz cananeia, que no entanto
creu, e agiu. E creu de tal forma, que confiou sua vida numa promessa atrelada
a um cordão de fio de escarlata pendente à janela, no muro da cidade (Jos
2.18-21). Na destruição de Jericó, Raabe foi salva!
Alguns pais da Igreja diziam
que Raabe é uma figura da Igreja. Gentia, zanah
ou porné, com concepções muitas vezes
equivocada, mas cheia de fé, e pronta a agir, a abandonar o seu povo, como o
Pai Abraão. Embora a salvação não esteja atrelada a um entendimento teológico plenamente
correto, e sim à fé em nossos corações, e à graça daquele que a concede; que
possamos ir além da compreensão de Raabe, de uma troca de hesed, e uma busca de emet (verdade,
fidelidade). O relacionamento com Yahweh leva-nos a uma
dependência tal com a divindade que nos faz compreender que nossa salvação
advém do fato de que “Achamos graça (hen) aos olhos do Senhor” (Gen 6.8)... Esta noção Raabe não tinha, e sobre isto,
poderemos falar depois...
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