Ambiente familiar é o lugar onde
se desenrolam os mais diversos dramas humanas. Tanto os mais sublimes
sentimentos e atitudes são observados na intimidade dos lares, quanto as mais
terríveis picuinhas e demonstrações de mesquinhez e maldade, os quais são capazes a alma humana de natureza adâmica.
O livro dos começos, Bereshit, na língua hebraica, ou simplesmente
Gênesis, como o conhecemos do grego, é cheio de narrativas familiares. As
primeiras narrativas bíblicas pintam cenas que antecederam a existência de
cidades e aglomerações humanas, cenas familiares. Encontraremos cenas de
profunda delicadeza, na qual o homem contempla sua mulher e diz “Esta agora é
osso dos meus ossos e carne da minha carne...” (Gn 2.23), romântico e
sensível! Mas encontraremos a seguir um
irmão invejoso matando o seu irmão mais novo, tornando-se o primeiro homicida
(Gn 4.8). O texto sagrado nos mostra que atentar contra a vida do próximo é
sempre atentar contra a vida do seu irmão, afinal somos todos filhos de Adão.
Mas não se imagine que apenas a primeira
família teve seus desastres. A família de Noé também teve suas confusões (Gn
9.22). Chegamos então à família de Abraão. Tensões decorrentes de infertilidade,
um sobrinho rico cujos rebanhos compartilhavam os mesmos recursos naturais (Gn
13.6)... As famílias patriarcais não podiam reclamar de tédio!
Para resolver seu problema de infertilidade
e garantir descendência a Abraão, Sara decide que sua escrava egípcia Hagar
seria dada a Abraão como mulher e teria um filho em nome dela (Gn 16.1-3).
Moça nova e bonita, com os hormônios à flor
da pele, e sadia sob o ponto de vista do seu aparelho reprodutor, Hagar logo
engravida. Guardando o filho de seu
senhor no ventre, coisa que sua senhora nunca havia logrado êxito, Hagar agora
não se via mais como uma simples escrava, ou dama de companhia de Sara. Ela agora
era tão senhora como sua senhora! Afinal trazia o filho de seu senhor dentro de
si. Aquele que um dia seria herdeiro de tudo aquilo.
Ferida em seu orgulho, Sara se sentiu
diminuída, humilhada por sua escrava, que em sua juventude e prenhez lhe
desprezava com o olhar (Gn 16.4). Indignada vai falar com Abraão. Grita, xinga,
diz que a culpa é toda dele (que também
agora só queria ficar com a escrava novinha). Põe o seu erro no colo de Abraão (meu agravo seja sobre ti). Pede que Deus julgue entre os
dois (Gn 16.5).
Abraão conhecendo a alma feminina sabia que
não valeria a pena discutir nem argumentar com a fera ferida. Devolve Hagar pra
Sara, e diz que ela faça com a escrava o que bem entendesse. Furiosa, Sara
aflige Hagar. Uma mulher sabe como provocar sofrimento em outra. Uma mulher
sentindo-se ofendida tem muitos recursos para humilhar e fazer sofrer alguém. Não
suportando as humilhações, Hagar foge de casa.
Um anjo do Senhor a encontra no deserto,
junto à fonte no caminho de Sur (Gn 16.7), e lhe dá uma ordem pouco animadora: “Torna-te para tua senhora e humilha-te
debaixo de suas mãos”. Como voltar para
casa? Um lugar que havia se tornado de difícil convivência! Sara tornara sua
vida um inferno! Como voltar? Melhor morrer que voltar ao palco do sofrimento!
Mas o anjo insiste! Volta para tua senhora, e humilha-te debaixo de suas mãos.
Uma Hagar bem resolvida e decidida precisava se humilhar. O orgulho de sua gravidez precisava dar lugar a uma humildade
sincera de respeito a sua senhora. E isto tornaria possível a convivência entre
as duas mulheres. Hagar retorna...
O retorno de Hagar é sinônimo do
desafio da tolerância. Viver no mesmo espaço com alguém que no passado já lhe
humilhou. Viver no mesmo espaço com alguém que tem grandes reservas a sua
pessoa. Esse foi o desafio imposto a Hagar, que só se tornou possível mediante
a humilhação.
Por outro lado, não foi muito simples Sara
receber de volta a mulher que seria mãe de um filho que agora, ela já não mais
considerava que seria seu, mas o filho de Abraão com a “Sirigaita” da Hagar. Ver
Hagar andando para cima e para baixo carregando o filho que ela nunca pôde ter,
continuava sendo humilhante. E constatar que a barriga estava crescendo, e
Abraão de vez em quando queria notícias do “seu filho”. Para Sara também foi um
exercício de tolerância.
Fico imaginando Abraão, ter que tolerar essas duas mulheres. Não deve
ter sido fácil! Tempos depois o filho de Abraão e Hagar nasceu. Ainda
conviveram juntos por mais de 15 anos... Tolerando um ao outro.
Somos família de Deus, não muito diferente
das famílias patriarcais. O apóstolo Paulo em mais de uma epístola nos traz a
exortação de “suportar uns aos outros em
amor” (Ef 4.2) e Colossenses 3. É o
desafio da tolerância em pleno século XXI.
Em
nossos rompantes de mesquinhez e carnalidade, façamos como Hagar, que deu
ouvidos à voz do Anjo “Volta para tua senhora, e humilha-te debaixo das suas
mãos.”
Concluo com o texto de Paulo aos
Colossenses, não precisa comentar:
“Revesti-vos, como eleitos de
Deus, santos e amados, de entranhas de misericórdia, de benignidade, humildade,
mansidão, longanimidade, suportando-vos uns aos outros e perdoando-vos uns aos
outros, se algum tiver queixa contra outro; assim como Cristo os perdoou, assim
fazei vós também. E sobre tudo isto, revesti-vos de amor, que é o vínculo da
perfeição.” (Col 3.12-14)
Nenhum comentário:
Postar um comentário