sábado, 6 de junho de 2015

O desafio da tolerância: O retorno de Hagar

    Ambiente familiar é o lugar onde se desenrolam os mais diversos dramas humanas. Tanto os mais sublimes sentimentos e atitudes são observados na intimidade dos lares, quanto as mais terríveis picuinhas e demonstrações de mesquinhez e maldade, os quais  são capazes a alma humana de natureza adâmica.
   O livro dos começos, Bereshit, na língua hebraica, ou simplesmente Gênesis, como o conhecemos do grego, é cheio de narrativas familiares. As primeiras narrativas bíblicas pintam cenas que antecederam a existência de cidades e aglomerações humanas, cenas familiares. Encontraremos cenas de profunda delicadeza, na qual o homem contempla sua mulher e diz “Esta agora é osso dos meus ossos e carne da minha carne...” (Gn 2.23), romântico e sensível!  Mas encontraremos a seguir um irmão invejoso matando o seu irmão mais novo, tornando-se o primeiro homicida (Gn 4.8). O texto sagrado nos mostra que atentar contra a vida do próximo é sempre atentar contra a vida do seu irmão, afinal somos todos filhos de Adão.
     Mas não se imagine que apenas a primeira família teve seus desastres. A família de Noé também teve suas confusões (Gn 9.22). Chegamos então à família de Abraão. Tensões decorrentes de infertilidade, um sobrinho rico cujos rebanhos compartilhavam os mesmos recursos naturais (Gn 13.6)... As famílias patriarcais não podiam reclamar de tédio!

    Para resolver seu problema de infertilidade e garantir descendência a Abraão, Sara decide que sua escrava egípcia Hagar seria dada a Abraão como mulher e teria um filho em nome dela (Gn 16.1-3).

    Moça nova e bonita, com os hormônios à flor da pele, e sadia sob o ponto de vista do seu aparelho reprodutor, Hagar logo engravida.  Guardando o filho de seu senhor no ventre, coisa que sua senhora nunca havia logrado êxito, Hagar agora não se via mais como uma simples escrava, ou dama de companhia de Sara. Ela agora era tão senhora como sua senhora! Afinal trazia o filho de seu senhor dentro de si. Aquele que um dia seria herdeiro de tudo aquilo.
    Ferida em seu orgulho, Sara se sentiu diminuída, humilhada por sua escrava, que em sua juventude e prenhez lhe desprezava com o olhar (Gn 16.4). Indignada vai falar com Abraão. Grita, xinga, diz que a culpa é toda dele  (que também agora só queria ficar com a escrava novinha). Põe o seu erro no colo de Abraão (meu agravo seja sobre ti). Pede que Deus julgue entre os dois (Gn 16.5).
    Abraão conhecendo a alma feminina sabia que não valeria a pena discutir nem argumentar com a fera ferida. Devolve Hagar pra Sara, e diz que ela faça com a escrava o que bem entendesse. Furiosa, Sara aflige Hagar. Uma mulher sabe como provocar sofrimento em outra. Uma mulher sentindo-se ofendida tem muitos recursos para humilhar e fazer sofrer alguém. Não suportando as humilhações, Hagar foge de casa. 
     Um anjo do Senhor a encontra no deserto, junto à fonte no caminho de Sur (Gn 16.7), e lhe dá uma ordem pouco animadora:  “Torna-te para tua senhora e humilha-te debaixo de suas mãos”.  Como voltar para casa? Um lugar que havia se tornado de difícil convivência! Sara tornara sua vida um inferno! Como voltar? Melhor morrer que voltar ao palco do sofrimento! Mas o anjo insiste! Volta para tua senhora, e humilha-te debaixo de suas mãos.
    Uma Hagar bem resolvida e decidida precisava se humilhar. O orgulho de sua gravidez precisava dar lugar a uma humildade sincera de respeito a sua senhora. E isto tornaria possível a convivência entre as duas mulheres. Hagar retorna...
   O retorno de Hagar é sinônimo do desafio da tolerância. Viver no mesmo espaço com alguém que no passado já lhe humilhou. Viver no mesmo espaço com alguém que tem grandes reservas a sua pessoa. Esse foi o desafio imposto a Hagar, que só se tornou possível mediante a humilhação.
    Por outro lado, não foi muito simples Sara receber de volta a mulher que seria mãe de um filho que agora, ela já não mais considerava que seria seu, mas o filho de Abraão com a “Sirigaita” da Hagar. Ver Hagar andando para cima e para baixo carregando o filho que ela nunca pôde ter, continuava sendo humilhante. E constatar que a barriga estava crescendo, e Abraão de vez em quando queria notícias do “seu filho”. Para Sara também foi um exercício de tolerância. 
   Fico imaginando Abraão, ter que tolerar essas duas mulheres. Não deve ter sido fácil! Tempos depois o filho de Abraão e Hagar nasceu. Ainda conviveram juntos por mais de 15 anos... Tolerando um ao outro.
    Somos família de Deus, não muito diferente das famílias patriarcais. O apóstolo Paulo em mais de uma epístola nos traz a exortação de “suportar uns aos outros  em amor” (Ef 4.2) e Colossenses 3.  É o desafio da tolerância em pleno século XXI.
   Em nossos rompantes de mesquinhez e carnalidade, façamos como Hagar, que deu ouvidos à voz do Anjo “Volta para tua senhora, e humilha-te debaixo das suas mãos.” 
      Concluo com o texto de Paulo aos Colossenses, não precisa comentar:
    “Revesti-vos, como eleitos de Deus, santos e amados, de entranhas de misericórdia, de benignidade, humildade, mansidão, longanimidade, suportando-vos uns aos outros e perdoando-vos uns aos outros, se algum tiver queixa contra outro; assim como Cristo os perdoou, assim fazei vós também. E sobre tudo isto, revesti-vos de amor, que é o vínculo da perfeição.” (Col 3.12-14)

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