terça-feira, 26 de maio de 2015

Epichoregein, entendendo o nosso papel na Economia da Salvação


Em tempos de discussões acaloradas sobre posições soteriológicas, que fazem a festa dos seminaristas ávidos por uma boa causa, e dividem grupos anteriormente unidos tornando-os de repente combatendo em campos distintos, sem saber exatamente qual o motivo da beligerância e qual o inimigo a combater, trago do início da história da Igreja uma palavra da Segunda Epístola de Pedro, que definitivamente não conhecia de grego como nossos teólogos e exegetas modernos conhecem. Pelo menos a primeira carta ditada por Pedro foi escrita por Silvano (I Pe 5.12), a segunda não sabemos. Pelo estilo definitivamente não foi o mesmo copista.
                                           (Pedro na prisão, Rembrandt, Israel Museum)

      Epichoregein é traduzido pela ordem “associai”, em II Pe 1.5: “vós também, pondo nisto mesmo toda a diligência, associai à vossa fé a virtude, e à virtude, a ciência... ”  Para entendermos o que Pedro quer nos ensinar precisamos iniciar lendo o texto a partir do versículo 3:
“Visto como o seu divino poder nos deu tudo o que diz respeito à vida e piedade, pelo conhecimento daquele que nos chamou por sua glória e virtude,
Pelas quais ele nos tem dado grandíssimas e preciosas promessas, para que por elas fiqueis participantes da natureza divina, havendo escapado da corrupção, que, pela concupiscência, há no mundo,
E vós também, pondo nisto mesmo toda a diligência, associais à vossa fé a virtude, e à virtude, a ciência...”
     Permita-nos continuar no versículo 10:
“Portanto, irmãos, procurai fazer cada vez mais firme a vossa vocação e eleição; porque, fazendo isto, nunca jamais tropeçareis.
Porque assim vos será amplamente concedida a entrada no Reino eterno de nosso Senhor e Salvador Jesus Cristo.”
     Não é necessário fazer nenhum tipo de malabarismo semântico ou hermenêutico para entender que a eleição falada no versículo 10 está descrita cuidadosamente no versículo 3: “Visto como o seu divino poder nos deu tudo o que diz respeito à vida e piedade, pelo conhecimento daquele que nos chamou por sua glória e virtude”. Eis um conceito simples e direto do que seja eleição. Ele nos chamou e nos deu tudo o necessário para a salvação. Não acho que Eleição seja uma palavra perigosa, ou que deva ser evitada, afinal é utilizada claramente no texto bíblico, obviamente em sintonia com os escritos paulinos de Romanos 9, Efésios 1, e outros.
      Para esclarecer melhor o termo, utilizo um trecho (pag. 53) do livro de D.A.Carson “A Difícil Doutrina do Amor de Deus” (2012), editado pela Casa Publicadora da minha denominação, com aprovação pelo Conselho de Doutrina:
 A soberania de Deus se estende à eleição. A eleição pode se referir à escolha de Deus da nação de Israel, ou à sua escolha do povo de Israel ou à escolha dos indivíduos. A escolha de Deus dos indivíduos pode ser para uma missão específica. A eleição é tão importante para Deus que ele preferiu escolher o mais jovens dos dois irmãos, Jacó e Esaú, antes deles nascerem e, portanto, antes que um deles tivesse feito algo de bom ou de ruim, “para que o propósito de Deus, segundo a eleição, ficasse firme” (Rm 9.11).
Até mesmo as maneiras altamente diversas pelas quais os novos convertidos são descritos no livro de Atos, refletem o modo confortável e desembaraçado pelo qual os escritores do Novo Testamento se referem à eleição. Frequentemente falamos sobre pessoas que “aceitam a Jesus como seu Salvador pessoal” palavras não encontradas nas Escrituras, embora não seja necessariamente errada como uma expressão sintética. Mas o livro de Atos pode sintetizar algum evangelismo estratégico relatando que “creram todos quantos estavam ordenados para a vida eterna” (At 13.48). Escrevendo sobre os cristãos, Paulo diz que Deus “nos elegeu nEle [isto é, em Cristo] antes da fundação do mundo... [Ele] nos predestinou para filhos de adoção por Jesus Cristo”(Ef 1.4,5; cf. Ap 13.7,8; 17.8). Certamente, Deus escolheu os convertidos tessalonicenses desde o princípio para serem salvos (II Ts 2.13).
     Parece-nos claro que Pedro falava que os irmãos para os quais ele destinara a carta foram eleitos. E não apenas foram eleitos, mas receberam uma vocação, descrita nas “grandíssimas e preciosas promessas, para que por ela fiqueis participantes da natureza divina”. A eleição tem por finalidade a vocação. Vocação de ser participante da natureza divina. Parece-nos familiar com o “Cristo que vive em mim paulino” (Gl 2.20).
     Na Economia da Salvação, Pedro está esclarecendo o que Deus faz. Praticamente tudo! Aliás é esta palavra usada pelo autor: “Visto como o seu divino poder nos deu tudo o que diz respeito à vida...”  Elege, vocaciona, concede promessas, torna-nos participantes da natureza divina.
     Pedro então se volta para os eleitos: “E vós também, pondo nisto mesmo toda a diligência, acrescentai à vossa fé a virtude, e a virtude, a ciência...” Eis a parte que nos cabe neste latifúndio (no dizer de um poeta, meu conterrâneo). Algo se espera de nós, e não de forma desleixada, mas com toda a diligência: Epichoregein (Acrescentai).
     Os estudiosos fazem questão de que esclarecimentos sejam feitos a esta palavra estranha. É uma palavra que tem uma história interessante, e remonta aos tempos de Atenas. O estudioso britânico do Novo Testamento William Barclay nos esclarece no seu livro “The Promise of the Spirit” (pág. 59), que uma das maiores de todas as glórias da antiga Atenas era a apresentação das peças produzidas por grandes escritores como Ésquilo, Sófocles, Aristófanes e Eurípedes. Para a montagem de tais peças altos custos eram envolvidos: os figurinos, as maquiagens, os ensaios de coral, que envolviam até cinquenta pessoas. A disponibilização para patrocinar o evento era chamada de choregia. O voluntário que se disponibilizava a ajudar era o choregos. Epichoregein, portanto era uma ação de generosidade realizada conjuntamente, entre os atores, diretores da peça, o Estado e os patrocinadores. Uma busca de suprir o necessário para a realização de algo.

        Paulo utiliza esta expressão em suas epístolas, normalmente relacionando Deus como o choregos: Em Gl 3.5 “Ele nos concede (epichoregon) o Espírito, (do verbo epichoregein)”; Em Fp 1.19 temos o “socorro (epichoregias) do Espírito de Jesus Cristo, (do substantivo epichoregia)”; Em II Co 9.10 “Aquele que dá (epichoregon) a semente”...
    Epichoregein é algo necessário a ser acrescentado, suprido. Pedro diz que Deus nos deu tudo, mas é necessário que atuemos em cooperação com ele, em epichoregein. Nossa parte não pode ser terceirizada ou esquecida.   E qual é a nossa parte?
     Acrescentar, suprir, adicionar, epichoregein à fé a virtude, à virtude a ciência... e assim continua a lista petrina. A fé já nos foi dada junto ao tudo que nos foi suprido, isto está bem de acordo com Paulo em Ef 2.8  “Porque pela graça sois salvos por meio da fé; e isso não vem de vós, é dom de Deus”. Mas precisamos com toda a diligência acrescentar à fé a virtude, e à virtude a ciência... É o momento de agirmos como choregos, é a hora de fazermos a choregia. Epichoregein é a ação do cristão na Economia da Salvação. É a pequena parte que nos cabe, pequena mas muito importante.
     Se assim o fizermos estaremos firmando a nossa vocação e eleição (II Pe 1.10). A Epichoregein confirma nossa eleição. Fica claro que se diligentemente não fizermos nossa parte, isto é, Epichoregein, a eleição não se confirma. Michael Green sabiamente ressalta: “Nossa vida radiante deve ser a prova silenciosa da eleição divina” (II Pedro e Judas, Introdução e Comentário, Vida Nova, pág. 71). Quem sabe se aqui, Pedro não está esclarecendo uma passagem paulina não tão fácil de entendimento quanto “Desenvolvei a vossa salvação com temor e tremor...” (Fp 2.12)?

      Curiosamente, o escritor sagrado usa novamente a mesma palavra no versículo seguinte (1.11): “Porque assim vos será generosamente concedida (Epichoregethesetai) a entrada no Reino eterno de nosso Senhor e Salvador Jesus Cristo.” Quando diligentemente nos empenhamos em nosso Epichoregein, Ele  generosamente nos concede (Epichoregethesetai) a entrada no reino celeste!
      O capítulo 2 de II Pedro, traz exemplos de pessoas que foram resgatadas mas não fizeram sua parte, Epichoregein, não confirmaram sua eleição e vocação, ou nas palavras de Paulo, não desenvolveram sua salvação. Estes negarão ao Senhor que os resgatou, trazendo sobre si mesmos repentina destruição (2.1). Durante todo o capítulo Pedro vai falar sobre a situação destes agora falsos doutores, os quais anteriormente haviam sido resgatados pelo Senhor (2.1), haviam escapado das corrupções do mundo, pelo conhecimento do Senhor (2.20). Aqui vale uma ressalva. Este conhecimento do Senhor (epignosei tou Kyriou) encontrado aqui, é a mesma expressão encontrada no cap. 1.3 “o conhecimento daquele que nos chamou...” (epignoseos tou kalesantos). Epignosis é um substantivo composto, diferente do simples gnosis, utilizado para conhecimento. Os especialistas concluem que epignosis é um conhecimento maior e mais eficiente do que gnosis. Estamos falando de um conhecimento mais profundo da Pessoa de Jesus!
     Concluímos portanto que, pessoas que receberam tudo, pelo divino poder e pela epignosis (conhecimento profundo) do Senhor, chamadas pela glória e virtude do Senhor, recipientes de suas promessas,  que escaparam da corrupção do mundo (II Pe 1.3-4), mas que não atentaram para Epichoregein (para acrescentar à fé a virtude, e à virtude, a ciência, e à ciência, a temperança, a paciência, e à paciência, a piedade, e à piedade, a fraternidade, e à fraternidade, o amor...II Pe 1.5-7) Enfim, não buscaram fazer firme a sua vocação e eleição (1.10)  [parece-nos que eles haviam sido eleitos!?]; O fim destes foi o envolvimento na corrupção do mundo, e seu estado foi pior do que o primeiro (2.20). Mais uma vez Pedro utiliza o termo epignousin (conhecimento profundo do Senhor) para sentenciar: “Porque melhor lhes fora não conhecerem (epignousin) o caminho da justiça do que, conhecendo-o, desviaram-se do santo mandamento que lhes fora dado” (2.21). Estamos falando de gente que de fato conhecia o Senhor, e que por não ter feito sua parte, Epichoregein, desviaram-se do santo mandamento.


    Posso ouvir Paulo dizendo a mesma coisa de outra forma: Aquele que está em pé, olhe não caia (I Co 10.12)... Não é somente uma hipótese, é uma possibilidade real! Está acontecendo hoje! Basta olhar ao redor... Que triste. Portanto, nos empenhemos na nossa Epichoregein!

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