Em tempos de discussões
acaloradas sobre posições soteriológicas, que fazem a festa dos seminaristas
ávidos por uma boa causa, e dividem grupos anteriormente unidos tornando-os de repente
combatendo em campos distintos, sem saber exatamente qual o motivo da
beligerância e qual o inimigo a combater, trago do início da história da Igreja
uma palavra da Segunda Epístola de Pedro, que definitivamente não conhecia de
grego como nossos teólogos e exegetas modernos conhecem. Pelo menos a primeira
carta ditada por Pedro foi escrita por Silvano (I Pe 5.12), a segunda não
sabemos. Pelo estilo definitivamente não foi o mesmo copista.
(Pedro na prisão, Rembrandt, Israel Museum)
Epichoregein é
traduzido pela ordem “associai”, em II Pe 1.5: “vós também, pondo nisto mesmo toda a diligência, associai à vossa fé a
virtude, e à virtude, a ciência... ”
Para entendermos o que Pedro quer nos ensinar precisamos iniciar lendo o
texto a partir do versículo 3:
“Visto como o seu divino poder nos deu tudo
o que diz respeito à vida e piedade, pelo conhecimento daquele que nos chamou
por sua glória e virtude,
Pelas quais ele nos tem dado grandíssimas e
preciosas promessas, para que por elas fiqueis participantes da natureza
divina, havendo escapado da corrupção, que, pela concupiscência, há no mundo,
E vós também, pondo nisto mesmo toda a
diligência, associais à vossa fé a virtude, e à virtude, a ciência...”
Permita-nos continuar no versículo 10:
“Portanto, irmãos, procurai fazer cada vez
mais firme a vossa vocação e eleição; porque, fazendo isto, nunca jamais
tropeçareis.
Porque assim vos será amplamente concedida a
entrada no Reino eterno de nosso Senhor e Salvador Jesus Cristo.”
Não é necessário fazer nenhum tipo de
malabarismo semântico ou hermenêutico para entender que a eleição falada no
versículo 10 está descrita cuidadosamente no versículo 3: “Visto como o seu divino poder nos deu tudo o que diz respeito à vida e
piedade, pelo conhecimento daquele que nos chamou por sua glória e virtude”.
Eis um conceito simples e direto do que seja eleição. Ele nos chamou e nos deu
tudo o necessário para a salvação. Não acho que Eleição seja uma palavra
perigosa, ou que deva ser evitada, afinal é utilizada claramente no texto
bíblico, obviamente em sintonia com os escritos paulinos de Romanos 9, Efésios
1, e outros.
Para esclarecer melhor o termo, utilizo
um trecho (pag. 53) do livro de D.A.Carson “A
Difícil Doutrina do Amor de Deus” (2012), editado pela Casa Publicadora da
minha denominação, com aprovação pelo Conselho de Doutrina:
A
soberania de Deus se estende à eleição. A eleição pode se referir à escolha de
Deus da nação de Israel, ou à sua escolha do povo de Israel ou à escolha dos
indivíduos. A escolha de Deus dos indivíduos pode ser para uma missão
específica. A eleição é tão importante para Deus que ele preferiu escolher o
mais jovens dos dois irmãos, Jacó e Esaú, antes deles nascerem e, portanto,
antes que um deles tivesse feito algo de bom ou de ruim, “para que o propósito
de Deus, segundo a eleição, ficasse firme” (Rm 9.11).
Até mesmo as maneiras altamente diversas
pelas quais os novos convertidos são descritos no livro de Atos, refletem o
modo confortável e desembaraçado pelo qual os escritores do Novo Testamento se
referem à eleição. Frequentemente falamos sobre pessoas que “aceitam a Jesus
como seu Salvador pessoal” palavras não encontradas nas Escrituras, embora não
seja necessariamente errada como uma expressão sintética. Mas o livro de Atos
pode sintetizar algum evangelismo estratégico relatando que “creram todos
quantos estavam ordenados para a vida eterna” (At 13.48). Escrevendo sobre os
cristãos, Paulo diz que Deus “nos elegeu nEle [isto é, em Cristo] antes da
fundação do mundo... [Ele] nos predestinou para filhos de adoção por Jesus
Cristo”(Ef 1.4,5; cf. Ap 13.7,8; 17.8). Certamente, Deus escolheu os
convertidos tessalonicenses desde o princípio para serem salvos (II Ts 2.13).
Parece-nos claro que Pedro falava que os
irmãos para os quais ele destinara a carta foram eleitos. E não apenas foram
eleitos, mas receberam uma vocação, descrita nas “grandíssimas e preciosas
promessas, para que por ela fiqueis participantes da natureza divina”. A
eleição tem por finalidade a vocação. Vocação de ser participante da natureza
divina. Parece-nos familiar com o “Cristo que vive em mim paulino” (Gl 2.20).
Na Economia da Salvação, Pedro está
esclarecendo o que Deus faz. Praticamente tudo! Aliás é esta palavra usada pelo
autor: “Visto como o seu divino poder nos
deu tudo o que diz respeito à
vida...” Elege, vocaciona, concede
promessas, torna-nos participantes da natureza divina.
Pedro então se volta para os eleitos: “E vós também, pondo nisto mesmo toda a
diligência, acrescentai à vossa fé a virtude, e a virtude, a ciência...”
Eis a parte que nos cabe neste latifúndio (no dizer de um poeta, meu
conterrâneo). Algo se espera de nós, e não de forma desleixada, mas com toda a
diligência: Epichoregein
(Acrescentai).
Os estudiosos fazem questão de que
esclarecimentos sejam feitos a esta palavra estranha. É uma palavra que tem uma
história interessante, e remonta aos tempos de Atenas. O estudioso britânico do
Novo Testamento William Barclay nos esclarece no seu livro “The Promise of the Spirit” (pág. 59),
que uma das maiores de todas as glórias da antiga Atenas era a apresentação das
peças produzidas por grandes escritores como Ésquilo, Sófocles, Aristófanes e
Eurípedes. Para a montagem de tais peças altos custos eram envolvidos: os
figurinos, as maquiagens, os ensaios de coral, que envolviam até cinquenta
pessoas. A disponibilização para patrocinar o evento era chamada de choregia. O voluntário que se disponibilizava a
ajudar era o choregos. Epichoregein,
portanto era uma ação de generosidade realizada conjuntamente, entre os atores,
diretores da peça, o Estado e os patrocinadores. Uma busca de suprir o
necessário para a realização de algo.
Paulo utiliza esta expressão em suas
epístolas, normalmente relacionando Deus como o choregos: Em Gl 3.5 “Ele
nos concede (epichoregon) o Espírito, (do verbo epichoregein)”; Em Fp 1.19
temos o “socorro (epichoregias) do Espírito de Jesus Cristo, (do substantivo
epichoregia)”; Em II Co 9.10 “Aquele que dá (epichoregon) a semente”...
Epichoregein é algo necessário a ser acrescentado, suprido. Pedro diz que Deus nos
deu tudo, mas é necessário que atuemos em cooperação com ele, em epichoregein. Nossa parte não pode ser
terceirizada ou esquecida. E qual é a
nossa parte?
Acrescentar, suprir, adicionar,
epichoregein à fé a virtude, à virtude a ciência... e assim continua a
lista petrina. A fé já nos foi dada junto ao tudo que nos foi suprido, isto está bem de acordo com Paulo em Ef
2.8 “Porque pela graça sois salvos por meio da fé;
e isso não vem de vós, é dom de Deus”. Mas precisamos com toda a diligência
acrescentar à fé a virtude, e à virtude a ciência... É o momento de agirmos
como choregos,
é a hora de fazermos a choregia. Epichoregein
é a ação do cristão na Economia da Salvação. É a pequena parte que nos cabe,
pequena mas muito importante.
Se assim o fizermos
estaremos firmando a nossa vocação e eleição (II Pe 1.10). A Epichoregein
confirma nossa eleição. Fica claro que se diligentemente não fizermos nossa
parte, isto é, Epichoregein, a
eleição não se confirma. Michael Green sabiamente ressalta: “Nossa vida radiante deve ser a prova
silenciosa da eleição divina” (II Pedro e Judas, Introdução e Comentário,
Vida Nova, pág. 71). Quem sabe se aqui, Pedro não está esclarecendo uma
passagem paulina não tão fácil de entendimento quanto “Desenvolvei a vossa
salvação com temor e tremor...” (Fp 2.12)?
Curiosamente, o
escritor sagrado usa novamente a mesma palavra no versículo seguinte (1.11): “Porque assim vos será generosamente
concedida (Epichoregethesetai) a entrada no Reino eterno de nosso Senhor e
Salvador Jesus Cristo.” Quando diligentemente nos empenhamos em nosso Epichoregein, Ele generosamente nos concede (Epichoregethesetai) a entrada no reino celeste!
O capítulo 2 de II
Pedro, traz exemplos de pessoas que foram resgatadas mas não fizeram sua parte, Epichoregein, não confirmaram sua
eleição e vocação, ou nas palavras de Paulo, não desenvolveram sua salvação. Estes negarão ao Senhor que os resgatou,
trazendo sobre si mesmos repentina destruição (2.1). Durante todo o
capítulo Pedro vai falar sobre a situação destes agora falsos doutores, os quais anteriormente haviam sido resgatados
pelo Senhor (2.1), haviam escapado das corrupções do mundo, pelo conhecimento
do Senhor (2.20). Aqui vale uma ressalva. Este conhecimento do Senhor (epignosei tou Kyriou) encontrado aqui,
é a mesma expressão encontrada no cap. 1.3
“o conhecimento daquele que nos chamou...” (epignoseos tou kalesantos).
Epignosis é um substantivo composto, diferente do simples gnosis, utilizado para conhecimento. Os
especialistas concluem que epignosis é
um conhecimento maior e mais eficiente do que gnosis. Estamos falando de um conhecimento mais profundo da Pessoa
de Jesus!
Concluímos portanto que,
pessoas que receberam tudo, pelo divino poder e pela epignosis (conhecimento
profundo) do Senhor, chamadas pela glória e virtude do Senhor, recipientes de
suas promessas, que escaparam da corrupção
do mundo (II Pe 1.3-4), mas que não atentaram para Epichoregein (para
acrescentar à fé a virtude, e à virtude, a ciência, e à ciência, a temperança,
a paciência, e à paciência, a piedade, e à piedade, a fraternidade, e à
fraternidade, o amor...II Pe 1.5-7) Enfim, não buscaram fazer firme a sua
vocação e eleição (1.10) [parece-nos que
eles haviam sido eleitos!?]; O fim destes foi o envolvimento na corrupção do
mundo, e seu estado foi pior do que o primeiro (2.20). Mais uma vez Pedro
utiliza o termo epignousin (conhecimento profundo do Senhor) para sentenciar: “Porque
melhor lhes fora não conhecerem (epignousin) o caminho da justiça do que,
conhecendo-o, desviaram-se do santo mandamento que lhes fora dado” (2.21).
Estamos falando de gente que de fato conhecia o Senhor, e que por não ter feito
sua parte, Epichoregein, desviaram-se
do santo mandamento.
Posso ouvir Paulo dizendo a
mesma coisa de outra forma: Aquele que está em pé, olhe não caia (I Co 10.12)...
Não é somente uma hipótese, é uma possibilidade real! Está acontecendo hoje!
Basta olhar ao redor... Que triste. Portanto, nos empenhemos na nossa
Epichoregein!
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