quarta-feira, 4 de setembro de 2013

Cargos e Funções X Títulos, ou entre Pastores e Barões

  Eu me lembro quando era garoto do subúrbio de Recife, lá no Córrego da Jaqueira... éramos pobres, mas tinha gente perto de nós que era muito mais pobre ainda... porém os livros me permitiam adentrar outro mundo... o da nobreza européia! Muito cedo eu conheci o Salão dos Espelhos, do Palácio de Versailles,  e fui me familiarizando com os Lordes britânicos, os condes franceses, os arquiduques da Áustria... Ah e eu sonhava com a corte, com a nobreza!
   Logo, logo eu sabia a hierarquia dos títulos de nobreza:  Barões, Viscondes, Condes, Marqueses, Duques...  Muito lindo tudo aquilo! E em meus sonhos, eu ficava pensando que um título de nobreza me cairia bem... um dia descobri no Museu do Estado um quadro com a imagem do Barão de Beberibe, que era o bairro onde morávamos! Eu ficaria bem recebendo uma honraria do tipo!
    Títulos eram outorgados pelos reis aos súditos que lhe agradavam e que com a honraria tornavam-se nobres, distintos dos demais. Lembrava-se da amante de D. Pedro I, Dona Domitila de Castro Canto e Melo, que recebeu o título de Marquesa de Santos. Militares recebiam títulos por suas façanhas no Campo de Batalha, como o nosso Duque de Caxias, o Duque de Wellington, que derrotou Napoleão.

    Na minha cabeça de garoto ingênuo eu olhava para a igreja onde me congregava e ficava outorgando títulos de nobreza aos irmãos... Eu e outros rapazes éramos os condes, alguns líderes seriam os duques...e por aí vai.
     O tempo passou... e eu tive oportunidade de entrar, de verdade, no Salão de Espelhos do Palácio de Versailles, e também em vários outros lugares que antes eram reservados unicamente à nobreza, e que um plebeu como eu nunca chegaria perto, se não houvessem sido transformados em museus... foi assim que eu pude conhecer o Schombrunn, a casa dos Habsburgs d’Áustria, o Palácio do Louvre, o  domicílio dos Valois da França...
   E agora, já um tanto crescido... vejo minhas imaginações de criança tornando-se realidade no mundo eclesiástico!  Há uma corrida por títulos sem precedentes... Todo tempo se ouve que alguém foi ungido apóstolo, ou bispa... ser pastor já não é mais suficiente! É preciso mais...

    É como se um simples título de Visconde fosse pouco (me lembrei de Monteiro Lobato, e o seu nobre Visconde de Sabugosa...) seria preciso  algo mais nobre... como um Marquês (ah...  marcantes lembranças da literatura: veio-me à memória o Marquês de Carabás, o título outorgado pelo Gato de Botas ao seu amo! E no Sítio também tinha o Marquês de Rabicó). Não basta ser pastor, isto é muito comum, é preciso ser intitulado bispo, de repente, bispo é pouco, ascende-se ao apostolado.
Mas esse sonho pela nobreza eclesiástica não paira unicamente na cabeça dos Príncipes da Fé. Entre a plebe espalha-se o desejo por títulos. Membros de igreja sonham  com o Diaconato, Diáconos sonham com o Presbitério, Presbíteros sonham  em ser Ministros... E assim caminha o mundo eclesiástico em seu devaneio pela nobreza... do mesmo jeito que eu imaginava quando era garoto: barões, viscondes, condes, marqueses e duques!
       Em minha necessidade de entender o mundo ao meu redor, voltei-me para a bíblia, tentando compreender  se as designações eclesiásticas de fato dizem respeito a títulos...
   Nos tempos vetero-testamentários encontraremos  sacerdotes, sumo-sacerdotes, videntes, profetas...  Percebo, porém, que não se tratava de um título de honra, embora um profeta ou sacerdote fosse tratado com honraria e distinção (I Sm 16.4) mas sim uma função, um encargo, uma missão, como o próprio Deus disse a Jeremias: Te designei como profeta às nações (Jr 1.5), ou a Amós: Vai profetiza ao meu povo, Israel (Am 7.15).
    Isso não quer dizer que não havia graves deturpações, como os profetas reais, pagos pelo rei para fazer uso da palavra divina (I Rs 22.6). Talvez para estes, muito mais que uma função, profeta significava um título de nobreza, que lhes permitia viver regaladamente do palácio. Bem que poderíamos chamá-los dos Barões do Israel Antigo, preocupados apenas em conservar seu status quo.
    E o que dizer dos sacerdotes? Tendo recebido o encargo de sacrificar e serem mediadores entre o povo e Deus, alguns também perderam totalmente a noção de sua missão e encargo divino. Como os filhos de Eli, que aproveitavam-se de sua nobre posição para se deitarem com as mulheres que serviam à porta do tabernáculo (I Sm 2.22), sem falar em outros desmandos (I Sm 2.13-14). Viam-se a si mesmos como os nobres condes da Religião de Israel.
   No tempo de Jesus a classe judaica dirigente, parceira do Império Romano era a elite sacerdotal do partido dos saduceus. De fato, naquela época o sacerdócio estava bem longe de ser encarado como missão, encargo ou função. Era título de nobreza obtido às custas de favores na relação política com os romanos. O sumo sacerdócio era fruto de negociações, e a preocupação era em buscar a manutenção do lugar conquistado (Jo 11.47-49). Eram os duques e arquiduques da Corte de Jerusalém.  Dá pra entender claramente a indignação de Jesus com tal situação. Advertências claras foram feitas contra os falsos profetas (Mt 7.15-23).
   Naquele ambiente onde funções haviam sido transformadas em títulos, e esvaziadas de seu significado original, João Batista e Jesus recusam-se a serem chamados de Profeta (Jo 1.21), embora de fato, o fossem.  Indagado acerca de sua identidade, João Batista afirma: “Eu sou a voz do que clama no deserto” (Jo 1.23), e Jesus aceitou ficar conhecido apenas como “Mestre” (Jo 13.13).
   Já era tempo de ser redescoberto o ofício profético e sacerdotal, totalmente esquecidos na vaidade louca dos títulos negociados e ostentados com orgulho por toda sorte de pessoas. Era necessária a vinda de um profeta semelhante a Moisés (Dt 18.18)! Jesus era o Mestre e seus seguidores apenas discípulos. O mestre não estimulou a competição entre os aprendizes, nem iniciou nenhum ensaio de distribuição de títulos que os fizessem sentir uns melhores do que outros. Embora essa fosse, em algum momento, a proposta dos discípulos. Eles pensavam em inaugurar uma pequena corte em torno do Rei-Messias: Tiago e João candidataram-se a Arquiduques do Império de Jesus. Grande decepção. Diante da proposta de que lhes fossem dados títulos de destaque no seu Reino, Jesus lhes disse:
     “Sabeis que os que são reconhecidos como governantes dos gentios têm domínio sobre eles, e os seus poderosos exercem autoridade sobre eles. Mas entre vós não será assim. Antes quem entre vós quiser tornar-se grande, será esse o que vos servirá; e quem entre vós quiser ser o primeiro, será servo de todos. Pois o próprio Filho do Homem não veio para ser servido, mas para servir e para dar a vida em resgate de muitos.” (Mc 10.35-45) 
   Talvez este tenha sido o maior balde de água fria da história!! E aquela bacia fez-lhes ver o mundo de outra forma. Entre os discípulos não deve haver busca de destaque ou competição, apenas todos servindo uns aos outros.
    A igreja inicia-se com os doze assumindo a função de apóstolos, agregando-se depois a figura dos diáconos, que parece-nos um pleonasmo, afinal ser cristão já pressupõe o servir. Depois Barnabé e Saulo recebem a incumbência do encargo da missionário (At 13.2). Não recebem um título, uma honraria para se destacarem dos demais... recebem um fardo, uma missão árdua, que Paulo encara da seguinte forma:
   “Mas em nada considero a minha vida preciosa para mim mesmo, contanto que eu complete a minha carreira e o ministério que recebi do Senhor Jesus, para dar testemunho do evangelho da graça de Deus.” (At 20.24)
   Fica muito claro que há uma continuidade dos encargos confiados aos homens da Velha Aliança, no Israel Antigo, como Jeremias, para os chamados da Nova Aliança:
  “E ele designou uns como apóstolos, outros como profetas, outros como evangelistas, e ainda outros como pastores e mestres, tendo em vista o aperfeiçoamento dos santos para a obra do ministério e para a edificação do corpo de Cristo...” (Ef 4.11-12)
   Fica difícil pensar nas funções de pastores, apóstolos, evangelistas, mestres como títulos de nobreza, como prêmios por serviços prestados, como forma de reconhecer o trabalho de alguém, como uma maneira de destacar alguém frente aos demais. Estamos falando de fardos pesados, encargos difíceis de carregar...
     O que dizer das palavras de Paulo: Se alguém almeja ser bispo, deseja algo excelente! (I Tm 3.1)??
    Vou pedir auxílio ao Bispo de Hipona, Agostinho para nos ajudar no entendimento dessa passagem:
    “Sua intenção era dar a entender que o episcopado é nome designativo de trabalho [cargo], não de dignidade [honraria]. A palavra é grega e significa que quem está à frente é superintendente deu seus subordinados, quer dizer, tem de olhar por eles. Epi significa “sobre” e skopos, “intenção”, cuidado; portanto, podemos traduzir episkopein por “superintender”, zelar por. Dessa forma, aquele que quer comandar sem se devotar não deve pensar em ser um bispo.” Cidade de Deus, XIX, 19, pág. 410 (Ed. Vozes)
    Apenas em períodos de grave apostasia os cristãos fizeram dos cargos, títulos de nobreza, como no final da Idade Média, quando as famílias poderosas da Europa negociavam a púrpura cardinalícia para seus filhos. Foi assim com os Médici de Florença, os Bórgia... Tempos negros aqueles... Espero que não voltem mais... Mas a história tem alguns espasmos de repetição... 

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