Eu me lembro quando era garoto do
subúrbio de Recife, lá no Córrego da Jaqueira... éramos pobres, mas tinha gente
perto de nós que era muito mais pobre ainda... porém os livros me permitiam
adentrar outro mundo... o da nobreza européia! Muito cedo eu conheci o Salão
dos Espelhos, do Palácio de Versailles,
e fui me familiarizando com os Lordes britânicos, os condes franceses,
os arquiduques da Áustria... Ah e eu sonhava com a corte, com a nobreza!
Logo, logo eu sabia a hierarquia dos títulos de nobreza: Barões, Viscondes, Condes, Marqueses,
Duques... Muito lindo tudo aquilo! E em meus
sonhos, eu ficava pensando que um título de nobreza me cairia bem... um dia
descobri no Museu do Estado um quadro com a imagem do Barão de Beberibe, que
era o bairro onde morávamos! Eu ficaria bem recebendo uma honraria do tipo!
Títulos eram outorgados pelos reis aos súditos que lhe agradavam e que
com a honraria tornavam-se nobres, distintos dos demais. Lembrava-se da amante
de D. Pedro I, Dona Domitila de Castro Canto e Melo, que recebeu o título de
Marquesa de Santos. Militares recebiam títulos por suas façanhas no Campo de
Batalha, como o nosso Duque de Caxias, o Duque de Wellington, que derrotou
Napoleão.
Na minha cabeça de garoto ingênuo eu olhava para a igreja onde me
congregava e ficava outorgando títulos de nobreza aos irmãos... Eu e outros
rapazes éramos os condes, alguns líderes seriam os duques...e por aí vai.
O tempo passou... e eu tive oportunidade de entrar, de verdade, no Salão
de Espelhos do Palácio de Versailles, e também em vários outros lugares que
antes eram reservados unicamente à nobreza, e que um plebeu como eu nunca
chegaria perto, se não houvessem sido transformados em museus... foi assim que
eu pude conhecer o Schombrunn, a casa dos Habsburgs d’Áustria, o Palácio do
Louvre, o domicílio dos Valois da
França...
E agora, já um tanto crescido... vejo minhas imaginações de criança
tornando-se realidade no mundo eclesiástico! Há uma corrida por títulos sem precedentes...
Todo tempo se ouve que alguém foi ungido apóstolo, ou bispa... ser pastor já
não é mais suficiente! É preciso mais...
É como se um simples título de Visconde fosse pouco (me lembrei de
Monteiro Lobato, e o seu nobre Visconde de Sabugosa...) seria preciso algo mais nobre... como um Marquês
(ah... marcantes lembranças da
literatura: veio-me à memória o Marquês de Carabás, o título outorgado pelo
Gato de Botas ao seu amo! E no Sítio também tinha o Marquês de Rabicó). Não basta ser pastor, isto é muito comum, é preciso
ser intitulado bispo, de repente, bispo é pouco, ascende-se ao apostolado.
Mas esse sonho pela nobreza
eclesiástica não paira unicamente na cabeça dos Príncipes da Fé. Entre a plebe
espalha-se o desejo por títulos. Membros de igreja sonham com o Diaconato, Diáconos sonham com o
Presbitério, Presbíteros sonham em ser
Ministros... E assim caminha o mundo eclesiástico em seu devaneio pela
nobreza... do mesmo jeito que eu imaginava quando era garoto: barões,
viscondes, condes, marqueses e duques!
Em minha necessidade de entender o mundo ao meu redor, voltei-me para a
bíblia, tentando compreender se as
designações eclesiásticas de fato dizem respeito a títulos...
Nos tempos vetero-testamentários encontraremos sacerdotes, sumo-sacerdotes, videntes, profetas...
Percebo, porém, que não se tratava de um
título de honra, embora um profeta ou sacerdote fosse tratado com honraria e
distinção (I Sm 16.4) mas sim uma função, um encargo, uma missão, como o próprio
Deus disse a Jeremias: Te designei como profeta às nações (Jr 1.5), ou a Amós:
Vai profetiza ao meu povo, Israel (Am 7.15).
Isso não quer dizer que não havia
graves deturpações, como os profetas reais, pagos pelo rei para fazer uso da
palavra divina (I Rs 22.6). Talvez para estes, muito mais que uma função,
profeta significava um título de nobreza, que lhes permitia viver regaladamente
do palácio. Bem que poderíamos chamá-los dos Barões do Israel Antigo,
preocupados apenas em conservar seu status
quo.
E o que dizer
dos sacerdotes? Tendo recebido o encargo de sacrificar e serem mediadores entre
o povo e Deus, alguns também perderam totalmente a noção de sua missão e
encargo divino. Como os filhos de Eli, que aproveitavam-se de sua nobre posição
para se deitarem com as mulheres que serviam à porta do tabernáculo (I Sm
2.22), sem falar em outros desmandos (I Sm 2.13-14). Viam-se a si mesmos como
os nobres condes da Religião de Israel.
No tempo de Jesus a classe judaica
dirigente, parceira do Império Romano era a elite sacerdotal do partido dos
saduceus. De fato, naquela época o sacerdócio estava bem longe de ser encarado
como missão, encargo ou função. Era título de nobreza obtido às custas de
favores na relação política com os romanos. O sumo sacerdócio era fruto de
negociações, e a preocupação era em buscar a manutenção do lugar conquistado
(Jo 11.47-49). Eram os duques e arquiduques da Corte de Jerusalém. Dá pra entender claramente a indignação de
Jesus com tal situação. Advertências claras foram feitas contra os falsos
profetas (Mt 7.15-23).
Naquele ambiente onde funções haviam sido transformadas em títulos, e
esvaziadas de seu significado original, João Batista e Jesus recusam-se a serem
chamados de Profeta (Jo 1.21), embora de fato, o fossem. Indagado acerca de sua identidade, João
Batista afirma: “Eu sou a voz do que clama no deserto” (Jo 1.23), e Jesus
aceitou ficar conhecido apenas como “Mestre” (Jo 13.13).
Já era tempo de ser redescoberto o
ofício profético e sacerdotal, totalmente esquecidos na vaidade louca dos
títulos negociados e ostentados com orgulho por toda sorte de pessoas. Era
necessária a vinda de um profeta semelhante a Moisés (Dt 18.18)! Jesus era o
Mestre e seus seguidores apenas discípulos. O mestre não estimulou a competição
entre os aprendizes, nem iniciou nenhum ensaio de distribuição de títulos que
os fizessem sentir uns melhores do que outros. Embora essa fosse, em algum
momento, a proposta dos discípulos. Eles pensavam em inaugurar uma pequena
corte em torno do Rei-Messias: Tiago e João candidataram-se a Arquiduques do
Império de Jesus. Grande decepção. Diante da proposta de que lhes fossem dados
títulos de destaque no seu Reino, Jesus lhes disse:
“Sabeis que os que são reconhecidos
como governantes dos gentios têm domínio sobre eles, e os seus poderosos
exercem autoridade sobre eles. Mas entre vós não será assim. Antes quem entre vós
quiser tornar-se grande, será esse o que vos servirá; e quem entre vós quiser
ser o primeiro, será servo de todos. Pois o próprio Filho do Homem não veio
para ser servido, mas para servir e para dar a vida em resgate de muitos.”
(Mc 10.35-45)
Talvez este tenha sido o maior balde de
água fria da história!! E aquela bacia fez-lhes ver o mundo de outra forma. Entre os discípulos não deve haver busca de destaque ou
competição, apenas todos servindo uns aos outros.
A igreja inicia-se com os doze assumindo a
função de apóstolos, agregando-se depois a figura dos diáconos, que parece-nos
um pleonasmo, afinal ser cristão já pressupõe o servir. Depois Barnabé e Saulo
recebem a incumbência do encargo da missionário (At 13.2). Não recebem um
título, uma honraria para se destacarem dos demais... recebem um fardo, uma
missão árdua, que Paulo encara da seguinte forma:
“Mas em nada considero a minha
vida preciosa para mim mesmo, contanto que eu complete a minha carreira e o
ministério que recebi do Senhor Jesus, para dar testemunho do evangelho da
graça de Deus.” (At 20.24)
Fica muito claro que há uma continuidade dos
encargos confiados aos homens da Velha Aliança, no Israel Antigo, como
Jeremias, para os chamados da Nova Aliança:
“E ele designou uns como
apóstolos, outros como profetas, outros como evangelistas, e ainda outros como
pastores e mestres, tendo em vista o aperfeiçoamento dos santos para a obra do
ministério e para a edificação do corpo de Cristo...” (Ef 4.11-12)
Fica difícil pensar nas funções de pastores, apóstolos, evangelistas,
mestres como títulos de nobreza, como prêmios por serviços prestados, como
forma de reconhecer o trabalho de alguém, como uma maneira de destacar alguém
frente aos demais. Estamos falando de fardos pesados, encargos difíceis de
carregar...
O que dizer das palavras de Paulo: Se
alguém almeja ser bispo, deseja algo excelente! (I Tm 3.1)??
Vou pedir auxílio ao Bispo de Hipona, Agostinho para nos ajudar no
entendimento dessa passagem:
“Sua intenção era dar a entender que o episcopado é nome designativo de
trabalho [cargo], não de dignidade [honraria]. A palavra é grega e significa
que quem está à frente é superintendente deu seus subordinados, quer dizer, tem
de olhar por eles. Epi significa “sobre”
e skopos, “intenção”, cuidado;
portanto, podemos traduzir episkopein
por “superintender”, zelar por. Dessa forma, aquele que quer comandar sem se
devotar não deve pensar em ser um bispo.” Cidade de Deus, XIX, 19, pág. 410
(Ed. Vozes)
Apenas em períodos de grave apostasia os cristãos fizeram dos cargos,
títulos de nobreza, como no final da Idade Média, quando as famílias poderosas da
Europa negociavam a púrpura cardinalícia para seus filhos. Foi assim com os
Médici de Florença, os Bórgia... Tempos negros aqueles... Espero que não voltem
mais... Mas a história tem alguns espasmos de repetição...
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