Parte do sermão do
monte é destinada a uma seção com esta estrutura: Ouvistes o que foi dito...
eu, porém, vos digo (Mt 5 21-48). Esse trecho do sermão de Jesus é precedido de
um esclarecimento acerca do cumprimento da lei de Moisés, ou da possibilidade
de Jesus estar ali com a missão de abolir a lei: “Não cuideis que vim destruir
a lei ou os profetas, não vim abolir, mas cumprir...” (Mt 5.17)
A lei foi um
estágio importante de nosso aprendizado, e não pode ser simplesmente ignorada,
ou abolida. Jesus veio ampliar o seu entendimento e aplicação.
Esse trecho do
sermão é finalizado com uma exortação: Sede vós teleioi (perfeitos, adultos, maduros) como é perfeito o vosso Pai,
que está nos céus (Mt 5.48). O sentido natural de teleios é adulto, aquele que atingiu o pleno estágio de
desenvolvimento, em contraponto aos bebês, garotos.
O caminho para o teleios passa necessariamente pelo
“ouvistes que foi dito”. Foi o próprio Deus que idealizou o “estágio seguinte”,
tendo em vista o descumprimento da aliança por parte de Israel:
Eis que dias vêm, diz o Senhor, em que farei
um concerto novo com a casa de Israel e com a casa de Judá... Mas este é o
concerto que farei com a casa de Israel depois daqueles dias, diz o Senhor:
porei a minha lei no seu interior e a escreverei no seu coração; e eu serei o
seu Deus, e eles serão o meu povo (Jer 31.31-33).
Enquanto a lei
estava escrita em tábuas de pedra, num novo estágio a lei estaria escrita no
coração de cada homem.
Ao recapitular
algumas ordenanças da lei, Jesus vai ampliando necessariamente a sua aplicação:
Ouvistes o que foi dito aos antigos: Não cometerás adultério. Eu,
porém, vos digo que qualquer que atentar numa mulher para a cobiçar já em seu
coração cometeu adultério com ela (Mt 5.27-28).
Alguns dos maiores
problemas dos leitores da bíblia hoje tem a ver com ignorar este princípio
estabelecido por Jesus: Ouvistes que foi
dito... eu, porém, vos digo. No Antigo Testamento temos a palavra de Deus, que
não foi abolida, mas precisa ser entendida à luz deste princípio: Ouvistes que
foi dito... eu, porém, vos digo. Se
ignorarmos esse princípio teremos posicionamentos errados, atitudes equivocadas, entendimentos falhos, e
ainda estaremos afirmando sermos bíblicos!
Vejamos alguns
exemplos:
Ouvistes que foi
dito... que Elias quando ameaçado pelos soldados do rei Acazias pediu que
descesse fogo do céu e consumisse o capitão que veio prendê-lo e os seus 50
soldados, tendo isto acontecido por duas vezes (II Rs 1.9-12).
Ouvistes que foi
dito... o sacerdote Joiada foi o mentor espiritual e conselheiro do jovem Rei
Joás, que inclusive, sob sua orientação
promoveu uma reforma no templo de Deus. Após a morte de Joiada, Joás deu
ouvidos a conselhos ímpios e desviou-se do Senhor. O Espírito de Deus revestiu
a Zacarias, filho de Joiada e profetizou trazendo a palavra de juízo de Deus. O
rei Joás mandou apedrejar Zacarias no templo:
Assim o rei Joás não se lembrou da
beneficência que Joiada, pai de Zacarias, lhe fizera; porém matou-lhe o filho,
o qual, morrendo disse: O Senhor o verá
e o requererá (II Cr 24.22).
Ouvistes que foi
dito... Salmos imprecatórios! Entre os salmos de louvor, de gratidão, estão
alguns salmos classificados como salmos imprecatórios. Estes salmos são
clamores por vingança. São pedidos que a justiça de Deus se manifeste sobre os
ímpios. Algo parecido com o clamor final do profeta Zacarias ao ser apedrejado.
Consome-os na tua indignação,
consome-os de modo que não existam mais, para que saibam que Deus reina em Jacó até aos confins da terra
(Sl 59.13).
Ouvistes que foi
dito: Olho por olho e dente por dente (Mt 5.38).
Pelos exemplos que
estamos trazendo, percebe-se que o homem do Antigo Testamento tinha uma noção muito
elementar da misericórdia e da graça de Deus. Seu estágio de aprendizagem ainda
é muito rudimentar. Mas, importante, necessário, válido!
Antes de chegarmos
ao “Eu porém vos digo”, de Cristo,
precisamos citar dois livros do Antigo Testamento que nos apontam um
avanço significativo dessa aprendizagem: Oséias e Jonas.
Em Oséias veremos
algo totalmente novo. Um profeta é mandado para casar com uma moça de reputação
moral comprometida, após o casamento e os filhos que se sucedem, ela volta aos
costumes de prostituição, e adultério, então ele retorna, a acolhe novamente,
recebe-a novamente como sua esposa, a perdoa e ama. O que havia sido dito, olho
por olho, dente por dente, previa a morte por apedrejamento daquela mulher
adúltera. Não o perdão, e a reconciliação.
Mas tudo o que
acontece em Oséias não é iniciativa do profeta, é ordenança de Deus. Então nós
teremos de fato algo novo, mas não porque no coração desse homem tenha perdão
ou misericórdia, mas porque ele estava sendo obediente a voz de Deus.
Em Jonas fica mais
claro ainda a resistência do homem em operacionalizar a graça e misericórdia de
Deus. Um povo idólatra, só merecia a destruição. Deus em seu amor e graça envia
Jonas para despertar o povo de seu erro. Jonas não quer trazer a mensagem porque quer ver o
cumprimento do “olho por olho, dente por dente”. Fica então frustrado quando o
povo se arrepende e Deus não destrói a cidade.
Eu porém vos
digo...
Quando Jesus enviou
alguns discípulos para preparar pousada numa aldeia de samaritanos, estes não
foram recebidos pois o seu aspecto era de quem ia a Jerusalém. João e Tiago
então disseram: Senhor, queres que digamos que desça fogo do céu e os consuma,
como Elias também fez? Jesus os repreende e diz: Vós não sabeis de que espírito
sois. Porque o Filho do Homem não veio para destruir as almas dos homens, mas
para salvá-las. E foram para outra aldeia (Lc 9.51-56).
Os discípulos
estavam vivendo um outro momento, mas continuavam apegados ao “ouvistes o que
foi dito”. Pedir fogo do céu para consumir alguém parece ser tanto mais
espiritual, quanto bíblico, afinal Elias o havia feito! Mas não é este o
espírito que Jesus foi enviado. Não de destruição, mas de restauração.
Discutindo sobre o
perdão, Pedro pergunta a Jesus:
Senhor, até quantas vezes pecará meu irmão
contra mim, e eu lhe perdoarei? Até sete? Jesus lhe disse: Não te digo até
sete, mas até setenta vezes sete (Mt 18.21-22).
Perdão parece ser
algo muito novo para Pedro, acostumado aos salmos imprecatórios! Então ele
propõe que possa perdoar sete vezes o seu irmão. Sendo isso um avanço
impensável! Jesus então diz, não sete, mas setenta vezes sete. Este número é
uma inversão da vingança encontrada em Gn 4.24... Eu, porém, vos digo!
Pedro diz que dará
a sua vida por Jesus, Jesus então lhe diz que “não cantará o galo enquanto
Pedro não tiver lhe negado três vezes” (Jo 13.37-38).
Pedro nega a Jesus
três vezes, como fora predito. Lucas registra que:
E, virando-se o Senhor, olhou para Pedro,
e Pedro lembrou-se da palavra do Senhor, como lhe tinha dito: Antes que o galo
cante hoje, me negarás três vezes. E, saindo Pedro para fora, chorou
amargamente. (Lc 22.61-62)
Como poderia ser ele perdoado depois de
tão grande pecado contra seu Senhor?
Ouvistes o que foi
dito... Eu, porém, vos digo.
Zacarias ao ser
apedrejado clamou pela vingança divina: O Senhor o verá e o requererá. Jesus
crucificado entre dois ladrões, com uma coroa de espinhos em sua cabeça, vendo
suas vestes sendo repartidas, sofrendo o escárnio da multidão, bradou:
Pai, perdoa-lhes, porque não sabem o que
fazem. (Lc 21.34)
Após sua
ressurreição Jesus encontra Pedro e os demais discípulos no Mar da Galileia,
conversa com Pedro e indaga se ele o ama. A pergunta é feita por três vezes, a
mesma quantidade de vezes que Pedro negara Jesus. Ao final Jesus diz a Pedro:
Apascenta as minhas ovelhas (Jo 21.15-17).
Jesus não apenas
enuncia uma ordenança, ele o faz. Ele não apenas diz a Pedro que devemos
perdoar tantas vezes sejam necessárias. Ele perdoa Pedro, e restabelece a
amizade de ambos. É o Deus-Homem que entre nós está, vivendo nossas decepções,
frustrações, sendo negado, traído e humilhado, que tem toda a propriedade para
dizer: Pai perdoa-lhes.
Jesus não apenas é o
exemplo. Ele, através do seu Espírito Santo, nos capacita a agirmos como ele.
Pois o seu concerto está nos nossos corações. Não agimos apenas porque fomos
ordenados a agir, como Jonas ou Oséias, agimos porque nosso coração é
habilitado para assim fazê-lo.
Ouvistes o que foi dito...
Quando Zacarias estava morrendo apedrejado bradou: Deus o verá e o requererá.
Estêvão foi
injustamente acusado de blasfêmia, após ter pregado um dos mais belos sermões
da história. Ao ser apedrejado, pondo-se de joelhos, clamou com grande voz:
Senhor, não lhes imputes este pecado (At 7.60).
Ninguém ordenou a
Estêvão que assim o dissesse, mas o seu coração cheio de amor pelo Senhor
Jesus, pôde expressar livremente essas palavras.
Que seja assim
conosco, em pleno século XXI... que no nosso coração fale mais alto “eu, porém,
vos digo”.