quinta-feira, 24 de setembro de 2015

A Vida na Sarjeta, A Roupa Nova do Rei e o Rock in Rio 2015

     Em mais uma dolorosa crise de hérnia de disco, que me obrigou a tirar licença do trabalho, e ficar deitado por muitas e muitas horas, fiz algumas leituras, dentre as quais o livro “A Vida na Sarjeta – O Círculo Vicioso da Miséria Moral”, do médico inglês Theodore Dalrymple. É uma leitura instigante, provocante, da qual não se sai ileso, me vejo obrigado a escrever algumas linhas a respeito dessa obra corajosa e verdadeira.
   Digo que é um livro corajoso porque ousa falar do que está posto, de forma crítica e cristalina, me fez lembrar a criança do conto "A roupa nova do rei", de Hans Christian Andersen, que grita espontaneamente: O Rei está nu!!!

  Vale a pena relembrar:

. Um dia, um alfaiate espertalhão deu-lhe o seguinte conselho:
- Majestade, é do meu conhecimento que apreciais andar sempre muito bem vestido, como ninguém; e bem o mereceis! Descobri um tecido muito belo e de tal qualidade que os tolos não são capazes de o ver. Com um manto assim Vossa Majestade poderá distinguir as pessoas inteligentes das pessoas tolas, parvas e estúpidas que não servirão para a vossa corte.
- Oh! Mas é uma descoberta espantosa! - respondeu o rei. - Traga-me já esse tecido e faça-me a roupa; quero ver as qualidades das pessoas que tenho ao meu serviço.
    O alfaiate aldrabão tirou as medidas do rei e, daí a umas semanas, apresentou-se, dizendo:
   - Aqui está o manto de Vossa Majestade. 
   O rei não via nada, mas como não queria passar por parvo, respondeu:
    - Oh! Como é belo!
   Então o alfaiate fez de conta que estava vestindo o manto no rei, com todos os gestos necessários e exclamações elogiosas:
    -  Vossa Majestade está tão elegante! Todos vos invejarão!
    A notícia correu toda a cidade: o rei tinha um manto que só os inteligentes eram capazes de ver. Um dia, o rei decidiu sair para se mostrar ao povo, desfilando pela cidade, com sua comitiva real acompanhando.
    Toda a gente fingia admirar a vestimenta, porque ninguém queria passar por estúpido, até que, a certa altura, uma criança, em toda a sua inocência, gritou:
   - Olha, olha! O rei está nu!”

     O psiquiatra inglês aposentado, que na verdade se chama Anthony Daniels, mas escreve sob o pseudônimo de Theodore Dalrymple,  já exerceu a medicina em situações extremas em áreas de risco na África, América do Sul, e em seu país, a Grã Bretanha. Seus escritos são o resultado de sua reflexão na lide diária com pacientes a quem ele prestou atendimento e acompanhamento.
     Dalrymple constata que estamos numa sociedade que retira a responsabilidade da maior parte das ações dos indivíduos. Tudo tem uma explicação oriunda nas ciências sociais, seja na história (de preferência de viés marxista), na sociologia, ou na psicologia. Adolescentes grávidas, filhos ilegítimos, mulheres que apanham de seus parceiros, o insucesso escolar e consequentemente profissional, a criminalidade, a vida nas ruas, a plena e ampla desestrutura familiar... tudo isto já foi explicado por alguma tese, ou por uma “escola” que busca “amparar” o ser humano totalmente frágil, débil e à mercê das forças sociais que agem sobre ele.
     As pessoas e suas ações são, na nossa sociedade, vítimas das elites, das desigualdades, das injustiças.  Se uma adolescente engravida ainda na idade escolar, a culpa é da sociedade que não a apoiou corretamente. Se um assaltante lhe rouba e lhe fere, ele é uma vítima das forças históricas desse país de 300 anos de colonialismo português.
   Tudo pode ser academicamente explicado. Pilhas de livros se somam às centenas de teses inéditas que entopem as prateleiras das bibliotecas de pós graduação das universidades, fruto do debruçar constante sobre esses temas que nos angustiam e comovem.
   A proposta de modernidade, lançada na Revolução Francesa norteia a maior parte do raciocínio dos nossos intelectuais, cujas ideias predominam não apenas na academia, mas na mídia em geral, e são assimiladas prontamente por uma multidão de pessoas incapazes de esboçar o mínimo de senso crítico.  A educação tradicional, a fé, o universo familiar tradicional, os valores  absolutos... tudo isto deve ser lançado na lata de lixo da história, como uma baboseira retrógrada. Um novo mundo não comporta mais essas velharias.
    Um mundo novo, conforme pensava Rousseau, vê o homem com sua essência de bondade, que precisa se desfazer dos padrões tradicionais para viver em sua plena liberdade e potencialidade.

    Mas o homem bom dos iluministas, guiado pela razão, que passa a ser sua única religião, o homem que desdenha da divindade e de suas leis, o homem cujos valores são relativos e dependem da situação, o homem cujo desejo é o que dita seu “estar no mundo”, não interessa quem o rodeia... Este homem moderno guiado pelas ideias de nossos intelectuais não parece que criou um mundo ideal.
    Mas o caos no qual nos encontramos, não é culpa deste homem. O caos é culpa das forças da história, ou talvez  do Estado que não cuida do povo como dizia.
   O grito infantil de Dalrymple, como o menino do conto de Andersen, O Rei Está Nu, ecoa incomodando todo mundo. Há sim, responsabilidade de cada indivíduo. Não se deve ir buscar os responsáveis pelos erros e equívocos na sociedade ou no passado histórico, deve-se buscar em primeiro lugar a responsabilidade de cada indivíduo.
   Um intelectual diria que estamos falando do óbvio ululante, mas este óbvio não é mais tão óbvio assim. As explicações acadêmicas e cultas protegem os indivíduos que argumentam que foram arrastados para determinada situação, que A, B, ou C são os verdadeiros culpados. Os protagonistas não agem, são agidos. São pobres marionetes passivos puxados pelos cordões inexoráveis do destino.
   Me identifiquei de uma forma muito forte com o argumento de Dalrymple, porque a minha história valida o seu raciocínio. Eu venho de uma família muito pobre dos morros da zona norte do Recife. Minhas duas avós eram lavadeiras. Ocupação inexistente nos dias de hoje. Meu avô paterno limpava os esgotos da cidade, foi o melhor que ele conseguiu como migrante pobre da área rural de Alagoas para Recife. Meu avô materno era trabalhador na construção civil.
    Meus pais se casaram e compraram uma casinha no Córrego da Jaqueira. Na minha infância e adolescência a ruazinha tranquila foi se tornando violenta. As drogas e a delinquência de forma geral se instalaram brutalmente em nossa periferia. Não havia muita expectativa em torno de nós. Garotos muito cedo abandonavam a escola e aderiam à vagabundagem e marginalidade. Alguns foram assassinados em plena adolescência.
    Mas valores hoje ultrapassados eram cuidadosamente cultivados em nosso lar. Em primeiro lugar tínhamos pais, ambos. Mas isso parece muito careta não é? Uma família tradicional. Depois tínhamos valores. A educação era um deles. Eu estudava próximo ao centro da cidade. Tomava o ônibus de manhã cedo. O ônibus vinha lotado, muito lotado mesmo. Mas nunca me passou pela cabeça abandonar os estudos.  O trabalho era outro valor inegociável. Minha mãe começou a trabalhar quando eu tinha 12 anos, para ajudar na renda familiar. Nunca esperamos que alguém nos desse qualquer coisa. O que conseguimos era sempre fruto de nosso trabalho. Nunca esperamos nada do Governo. E tínhamos a fé. Nossas crenças eram resultado de nossas experiências de fé, que nos impulsionavam a ir adiante confiando em Deus, e temendo a Ele. Não havia espaço para fazermos as coisas erradas. Mas falar de fé em tempos modernos é complicado, não é?

     Dalrymple você está certo: A maior pobreza de nossa sociedade é a pobreza moral e espiritual. Não fui um caso de insucesso por ter nascido pobre.  Fizemos escolhas certas a partir de valores que nos foram passados por nossos pais.  Frequentei a universidade, em cursos de graduação e pós graduação. Fui aprovado em concurso. Conquistei um espaço no mundo. Casei, tive filhos, constitui uma nova família. Meus filhos estão seguindo nossos passos. Estou escrevendo estas linhas, porque tenho uma habilidade mínima para concatenar ideias e pensar por mim mesmo. Nós somos protagonistas da nossa história, responsáveis pelos erros e acertos.
    Enquanto escrevo estas poucas palavras, uma multidão de pessoas se acotovela no Rio de Janeiro para o grande evento Rock in Rio 2015. A imprensa nacional e internacional faz ampla cobertura do evento. Gente do país inteiro correu para o Rio para ouvir de perto sua banda favorita.
    Ficamos escandalizados porque muitos jovens da atualidade são verdadeiros bárbaros, sem qualquer resquício de educação ou civilidade. Falamos tanto em tolerância, mas experimentamos os mais diversos tipos de intolerância por nossas diferenças, sejam elas de gênero, de raça ou de fé. Queremos uma sociedade mais justa, e mais sensível.
     Mas quem vai ao Rock in Rio 2015, vai ouvir a banda nacional “Ultraje a Rigor”, ultrajando a educação tradicional e os bons modos.  Vai se deliciar com o visual demônio louco da banda americana Motley Crue... Fico imaginando o que esse povo vai transmitir para seus ouvintes... Mas como um mundo moderno decreta o fim da fé, eis a proposta da banda “Faith no More”. Para estremecer as estruturas de alguém que esboce algum cristianismo, a expressão cristã “Cordeiro de Deus” dá nome à banda americana “Lamb of God”, em uma de suas canções “Walk with me in hell”, alguém é convidado a “andar com o outro no inferno”.



     Eu e Dalrymple nos perguntamos: Alguém acha que essas ideias são somente ideias? Nunca se transformarão em ação na mente de alguém menos equilibrado? O Rei está Nu, mas o Rock in Rio é o grande evento do ano... deixará marcas indeléveis em quem foi, ou em quem está acompanhando pela televisão. Semana que vem teremos os primeiros resultados: de gravidez indesejada a suicídio. É muita pobreza moral... 

segunda-feira, 14 de setembro de 2015

Uma Lógica inversa: Um novo toque

     Todos os evangelhos sinóticos narram a história da mulher do fluxo de sangue, que constitui um incidente no caminho de Jesus para a casa de Jairo, príncipe da Sinagoga. Uma mulher que sofre por 12 anos de uma hemorragia. Que gasta tudo com médicos em busca de sua cura... sem sucesso.
     Para entender o sofrimento daquela mulher, que não é apenas físico, mas também psicológico, precisamos entender o que a Lei de Moisés previa para uma mulher numa situação daquele tipo, isto é, com fluxo constante de sangue:
   “Também a mulher, quando manar o fluxo de seu sangue, por muitos dias fora do tempo da sua separação ou quando tiver fluxo de sangue por mais tempo do que a sua separação, todos os dias do fluxo da sua imundícia será imunda, como nos dias da sua separação. Toda cama sobre que se deitar todos os dias do seu fluxo ser-lhe-á como a cama da sua separação; e toda coisa sobre que se assentar será imunda, conforme a imundícia de sua separação. E qualquer que as tocar será imundo; portanto, lavará as suas vestes, e se banhará com água, e será imundo até à tarde.” Lev 15.25-27

    A doença tinha um caráter de impureza, para cujas leis de higiene era exigido que a pessoa com tais sintomas tivesse que se isolar. Quem a tocasse ou em que ela tocasse seria imundo. O isolamento social traz uma angústia, uma tristeza por ter suas potencialidades tolhidas. E o seu toque transformava tudo em impuro, imundo.

   Ela então “ouve falar de Jesus”. A fama do Mestre de Nazaré em sua simplicidade, mas em seu testemunho de “Mestre vindo da parte de Deus”, chega aos ouvidos da mulher sofrida e esgotada. Surge então uma nova esperança. Stenio Marcius capta a expectativa da mulher na canção “Alegria sem medida”:
Eu vou poder amar de novo como antes
E celebrar a recompensa dos amantes
Tomar no colo os meus filhos sem receio
Voltar a ser de minha casa adorno e esteio

Quero correr feito menina entre as parreiras
E me deixar levar nas velhas corredeiras
Quero esquecer os doze anos e os tormentos
E que gastei inutilmente os meus proventos

Sinto chegar uma alegria sem medida
Sinto que agora vou saber o que é vida
Serei curada de maneira inconteste
Se eu com fé tocar na orla de suas vestes”
      A fé descortina a possibilidade do sobrenatural, abre caminho para uma nova lógica, até então nunca cogitada. A mulher crê que será curada se tocar na orla das vestes de Jesus. Ora como seria possível um toque que possibilitaria a cura, se até então tudo que ela tocasse se tornava impuro?
        Uma lógica nova, um toque que purifica, transforma, cura... o toque em Cristo.
     Os leprosos constituíam um outro grupo de pessoas isoladas. Não podiam ter contato com as pessoas, muito menos tocá-las. Jesus tocou o leproso e o curou (Mt 8.3).
     Cristo estabelece uma nova lógica: Toques que curam, que transformam, que saram... quando o que se espera são toques que transmitem impureza, imundície.
     O que transmite o nosso toque? Ou quando somos tocados, o que acontece conosco? Somos corrompidos? Nos tornamos sujos tal qual aquele que nos tocou? Somos contaminados pela impureza da maldade, maledicência, imoralidade, incredulidade...?
    Não era assim com Jesus! O seu toque ou o toque de alguém que o tocava, não mudava sua natureza e característica, isto é, não o tornava impuro, ou doente. Pelo contrário, quem o tocava, ou quem ele tocava é quem era transformado! Por isso ele podia ir à casa de Zaqueu, ou comer com os amigos publicanos de Mateus e não se transformar em um deles, em vez disso, mudar suas vidas.
     Mas Jesus sabia exatamente quem ele era, e qual era sua missão! E nós? Sabemos quem somos? Sabemos qual a nossa missão neste mundo? Isto é definitivo para o resultado de nosso toque, ou do toque de alguém. Nosso toque ou transforma alguém ou resulta em nossa transformação. O verdadeiro seguidor de Cristo pode tocar e ser tocado, porque é alguém transformado para transformar o mundo!