Às vezes eu me surpreendo como certas mudanças não afetam mais a vida
das pessoas. Ou pelo menos ninguém acha relevante a ponto de comentá-la.
Sexta-feira passada, dia 31 de Outubro, foi
o último dia de funcionamento do Restaurante Self-Service Mistura
Paulista, no Centro de Fortaleza. Assim
que soube do encerramento das atividades de uma casa que funcionou por 22 anos
fiquei triste, e fiz questão de lá almoçar os dois últimos dias, como uma
espécie de despedida... uma elaboração de luto.
Pensei em escrever algumas linhas que demonstrassem meu estado de
espírito. A correria cotidiana não me permitiu imediatamente fazê-lo. Porém,
agora, freado compulsoriamente por força de uma conjuntivite, não pude mais
adiar.
Talvez alguém tenha escrito algo, talvez
não. O Mistura Paulista, não era conhecido como um espaço de boêmios, de poetas, de literatos.
Era o lugar onde almoçavam trabalhadores, empregados, executivos, gente de
negócios. Muitos que normalmente não tem
tempo de refletir sobre o fechamento de um restaurante, e muito menos de
escrever sobre o significado disto para suas vidas. Ou talvez, seja isto mesmo
muito supérfluo, até quase imperceptível...
Acho que sou um ser um tanto estranho,
antigo, antiquado, dono de uma sensibilidade ultrapassada, que remonta a uma
poesia fora-de-moda. Por que o drama, se
era apenas um restaurante? Esta é a
questão. Pra mim, não era apenas um restaurante. Foi um espaço primordialmente de
encontro. Embora o simples fato de ser um restaurante, já indique sua
importância para o ser humano: um lugar
de restauração... por isso restaurante, dizem que esse vocábulo, oriundo do
francês, vem de “comida restauradora”.
Além de ser um lugar onde eu era restaurado
ao me alimentar com uma boa comida. Era um lugar de encontro, e que fazia me
sentir em casa. Encontro com os
funcionários da casa: O mestre churrasqueiro, que já sabia que eu não gostava
de carnes, mas apreciava um queijo coalho frito; a moça do caixa, que nem
precisava mais perguntar se o pagamento no cartão era no débito ou no crédito,
e a tia, a senhora que nos atendia no
primeiro andar, e que eu chamava de Tia.
Eu sou um fortalezense de apenas 9 anos.
Mas o Mistura Paulista foi um dos primeiros estabelecimentos gastronômicos ao qual eu fui apresentado na cidade. Meu
sogro me levou lá, quando eu ainda nem residia em Fortaleza. E vez por outra a
agenda dele permitia que almoçasse com um genro assoberbado de trabalho. Trabalhando na Praça do Carmo, minha
frequência no Mistura aumentou muito, bastava virar a esquina da Rua Major
Facundo e caminhar até a metade do segundo quarteirão.
Lembro do Mistura como um lugar
de celebração. Quando terminávamos alguns cursos no nosso Centro de Formação,
nossa querida GEPES Fortaleza, o Mistura Paulista era o destino de todo mundo da
turma no último dia do curso. Íamos celebrar juntos as novas amizades, bem como
os conhecimentos adquiridos.
Reservávamos um espaço no primeiro andar, e íamos nós comermos juntos.
Comer junto é algo sagrado, especial. Nem nos
damos conta disso. Não é à toa que o cristianismo celebra sua doutrina central,
a morte vicária de Jesus, com uma refeição coletiva. Em Emaús, o mestre
recém-ressuscitado é reconhecido no partir do pão. Hoje comemos com tanta
rapidez, e tão preocupados com o que vamos fazer depois, que não valorizamos
mais este momento único, mágico.
Ainda há outros para os quais o ato de
comer junto não faz sentido, porque a hora da refeição tornou-se o momento de
um balanço contábil, onde cada caloria é meticulosamente contabilizada. Então,
o sabor da comida é substituído pelo terror do “engordamento”.
Fico pensando nos amigos que precisavam
compartilhar alguma coisa, e meu horário de almoço era disponibilizado,
juntamente com um espaço no andar de cima do Mistura Paulista, onde éramos servidos com diligência pela Tia, que servia
os mais diversos tipos de sucos, para os paladares mais exigentes.
Na maioria das vezes eu ia sozinho mesmo. E
aí eu tinha um encontro comigo mesmo, e meus pensamentos. O lindo aquário próximo à churrasqueira
trazia-me uma sensação de paz, na selva de pedra da capital cearense. Vou lembrar sempre do aquário. Recentemente
um cardume de peixinhos nasceu, e puseram uma rede no meio do aquário,
separando os bebês dos adultos, acredito
que para evitar que os maiores devorassem os pequenininhos. Outro dia eu olhei
e vi que a rede já havia sido retirada, os menorzinhos já nadavam junto com os
grandes sem ter nada a temer...
Mas às vezes íamos ao Mistura também nos
domingos, principalmente quando nós ainda não tínhamos filhos adolescentes, e a
comida por quilo não era tão dispendiosa... Depois da Escola Dominical,
comíamos no Mistura e andávamos um pouco pela cidade deserta, caminhando até a
Praça do Ferreira, onde dizíamos às crianças: Aqui a mamãe e o papai trocaram
seu primeiro beijo de amor.
Sexta-feira, dia 31 de Outubro foi o
último dia. Conversei com a Tia, e ela falou que trabalhava lá desde quando o
restaurante foi aberto, há quase 22 anos. Já estava aposentada e ia passar um
tempo de”férias”. Vou sempre lembrar do
seu sorriso e presteza. Disse obrigado pela última vez à moça do caixa e fui
tomar meu último chocolate quente... Delícia de chocolate quente... vou sentir
falta... Mas as memórias não morrem. O Mistura Paulista da Major Facundo vai
sempre existir em nossas memórias!
Esion e sua sensibilidade de escritor! Como você, mas sem a sensibilidade tão aguçada de frequentador assíduo do "Mistura Paulista", também sinto saudade! Lamentamos não ser mais possível nos restaurarmos com o pão lá produzido e seu inigualável chocolate quente.
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