domingo, 20 de maio de 2012

Uma comparação desigual: "Porventura não são Abana e Farpar, rios de Damasco, melhores do que todas as águas de Israel?" Parte 2

   Pensar que em Damasco, os rios Abana e Farpar corriam límpidos e brilhantes, semeando fertilidade por onde passavam e embelezando a paisagem, e a ordem do profeta era mergulhar sete vezes no Jordão...
    A comparação foi inevitável: “Não são porventura Abana e Farpar, rios de Damasco, melhores do que todas as águas de Israel?”.
    Como mergulhar naquelas águas barrentas quando os cursos dágua da Síria eram muito mais límpidos e translúcidos?
    A objeção do general Naamã é perfeita: Inegavelmente os rios de Damasco eram superiores ao Jordão, em beleza, em qualidade da água, em limpeza aparente... Mas o milagre não estava lá, estava nas águas barrentas do Jordão.
    Alguém, de repente, resolve lembrar ao general que seu objetivo ali não era tomar um banho no Jordão para refrescar-se, se assim o fosse, melhor seria fazê-lo em Damasco. Ele estava ali não como o general, ele estava ali como o leproso precisando de tratamento, de cura.
    Todos nós somos encaminhados para o Jordão, para lá sermos tratados. A Igreja, a comunidade de cristãos a qual pertencemos não se parece com Abana e Farpar, assemelha-se ao Rio Jordão.
    Inevitavelmente acontecem comparações: A comunidade científica a qual pertenço é mais culta, mais esclarecida... minha equipe de trabalho é mais coesa, mais entrosada, mais comprometida... meus amigos de discussão artística são mais sensíveis, mais abertos ao belo, mais criativos... meu grupo de aventuras e de caminhada e trilhas é mais ousado, mais disposto a correr riscos... meu grupo de discussão filosófica é mais racional, mais rigoroso... meus colegas de faculdade são mais despojados, mais abertos às novidades...
    Ninguém em sã consciência diria que Naamã estava errado. Sua objeção tinha rigor lógico, era óbvio, incontestável. Os rios Abana e Farpar eram melhores que as águas barrentas do Jordão.
  Os grupos que frequentamos, conhecemos, interagimos podem sim, ser equiparados ao Abana e Farpar... podem ser em qualidade, melhores do que o nosso Jordão!
   A Igreja não é uma sociedade filosófica, ou científica, ou de esportes de aventura, ou de conhecimento... Igreja é um lugar para onde são encaminhados os leprosos, os doentes, os sujos, os carentes de tratamento. Não é um lugar de encontro de generais, ou de grandes expoentes da sociedade. É um lugar onde os generais são simplesmente leprosos, os professores transformam-se em pessoas carentes de conhecimento, os médicos viram enfermos em convalescença... todos com suas sujeiras, suas mazelas... por isso as águas do Jordão são tão barrentas... é a sujeira de cada um...
    ... e quem de nós não temos as nossas sujeiras? Como ter nojo de mergulhar num lugar onde as sujeiras estão em efervescência saindo da pele das pessoas, se a água está suja também por nosso mal, o sujo que existia em nós?
    O Abana e Farpar são mais limpos, mais aprazíveis, mas neles os leprosos continuam leprosos. É no Jordão onde a limpeza acontece.
    Mas como chegar ao Jordão? É preciso descer... (II Rs 5.14). Samaria ficava  situada a meio caminho do Jordão ao Grande Mar, ao oriente da planície de Sarom, no alto de um monte oblongo, a mais de 100 metros acima do nível do mar. Para chegar ao Jordão era necessário enfrentar um desnível de mais de 300 metros, afinal, na linha de Samaria o rio corria em seu vale a mais de 200 metros abaixo do nível do mar.
    A descida para o Jordão também tinha um significado... durante a descida Naamã vai se despindo de sua autoimagem orgulhosa de General vencedor, para assumir a de um leproso carente. É assim também conosco, descemos de nossas posições sociais e nos vemos apenas como pecadores perdidos necessitando da salvação de Deus. Corremos para mergulhar no Jordão, onde está a limpeza, a cura, a pureza milagrosa da justiça de Cristo.
    Não foi à toda que séculos depois, João Batista encontrou-se no mesmo Jordão batizando as pessoas que se arrependiam de seus pecados. Outro tipo de lepra, mas sempre a enfermidade que precisa de cura... Estavam chegando saduceus e fariseus (Mt 3.7) e vinham, como o general Naamã confiantes pelo lugar que ocupavam na sociedade, esquecidos de sua lepra... Novamente alguém tem que lhes lembrar que eles não estão ali como figuras de destaque... São raça de víboras fugindo da ira vindoura, desafiados a produzir frutos dignos de arrependimento (Mt 3.7-8)...
    Embora outros rios pudessem ser melhores, é no Jordão que as pessoas são batizadas, confessam seus pecados e saem purificadas para uma nova vida (Mt 3.6).
    Deixemos que o general Naamã, os saduceus e os fariseus usufruam das belezas do Abana e Farpar... mas nós, leprosos e raça de víboras em fuga da ira vindoura, desçamos e mergulhemos em humildade no Jordão e alcancemos a salvação de Deus.
   E neste Jordão sejamos todos trabalhados pelo Senhor em nossas mazelas, em nossas fraquezas, em nosso pecado, em nossa maldade!

Uma comparação desigual: “Porventura, não são Abana e Farpar, rios de Damasco, melhores do que todas as águas de Israel?” Parte 1

     É conhecida a história do general sírio Naamã, que vai à Samaria, capital do reino de Israel, em busca de cura para a sua lepra. A pequena escrava israelita lhe trouxera um raio de esperança quando avisou a sua esposa que em Israel havia um profeta que poderia restaurar sua saúde (II Rs 5.1-3).

    Agora ele chegara de Damasco em Samaria, com a carta do seu Rei, Ben-Hadad (Filho de Hadad), direcionada para o Rei de Israel, bem como  muitos presentes e riquezas,  inexplicavelmente o rei israelita leu com terror a carta do monarca sírio, e rasgou seus vestidos. Estranhos estes hebreus, não?                                    
   Ora, o Rei sírio, Ben-Hadad, isto é, Filho de Hadad, o deus sírio das tempestades (chamado pelos hebreus de Rimmon, II Rs 5.18), cujo templo estavam em Damasco, através daquela carta fazia um pedido ao rei de Israel, filho de Yahweh. Ambos os reis fariam uma ponte entre seus respectivos deuses em prol da cura do general sírio. Nada mais comum, se existia algo que poderia ser feito pela divindade, naturalmente o rei, filho do deus iria fazê-lo!

    De repente o rei israelita transtornado fica aliviado ao receber uma notícia, e o general sírio é encaminhado à casa de um profeta.

    Naamã conhecia profetas, era uma atividade comum no mundo da época. Mas os profetas sírios buscavam descobrir o futuro para orientar os reis sobre guerras, alianças, decisões a serem tomadas... Em que um profeta israelita poderia ajudá-lo?

   Ele imaginou então que o profeta iria sair à porta para recebê-lo, na qualidade de um alto emissário do reino sírio, se colocaria de pé, e invocaria o nome do Senhor seu Deus, passaria a mão sobre a sua pele e restauraria a sua lepra (II Rs 5.11).

   Qual não foi sua surpresa quando foi recebido à porta por um servo, um mensageiro, que lhe disse sem rodeios: “Vai e lava-te sete vezes no Jordão, e a tua carne te tornará e ficarás purificado.” (II Rs 5.10)   

 

   Nenhuma honra, nenhuma deferência, nenhuma referência à sua importância, seu cargo... sua eminência. Uma verdadeira humilhação, pouco caso... um absurdo total e pleno.
   Possesso de raiva Naamã esqueceu qual tinha sido o objetivo daquela viagem. Ele não estava ali como comandante do exército sírio para vencer mais uma batalha contra os israelitas. Nem como representante do alto escalão do Governo de Damasco. Ele estava ali como um leproso em busca de cura, um condenado em busca de salvação...
   Mas seu orgulho escondia dele toda essa realidade. Então ele toma consciência de que a ordem é para lavar-se no Rio Jordão! O Rio Jordão... não pode ser, lavar-se sete vezes no Rio Jordão! É demais para o entendimento de um homem!
    
    Claro que o General conhecia o Jordão. Era um curso dágua que se originava do degelo do Monte Hermon, nos recantos fronteiriços do seu país, a Síria, com o Líbano. O nome Jordão significa aquele que desce. E aquele rio não fazia outra coisa a não ser descer. Na fronteira com a Síria, o Jordão atravessa o lago de Hule. Um pouco abaixo do lago de Hule era necessário cruzar o Jordão para penetrar em território sírio. Mais ao sul estava o lago de Genezaré, que já está a 210 metros abaixo do nível marítimo, e 110 km abaixo, estava a foz do Jordão, a 390 metros abaixo do nível do Grande Mar, no Mar Salgado.
    Além de configurar uma forte descida, o Jordão era também um rio de muitos meandros, muita sinuosidade, muitas curvas... a conjunção destas duas características fazia do Jordão uma turbulenta corrente barrenta.